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terça-feira, 21 de maio de 2013

PARABÉNS A TODOS OS ALUNOS DA 8ª A PELA BELÍSSIMA APRESENTAÇÃO NO CAFÉ COM POESIA 2013

domingo, 19 de maio de 2013


Baixe 3 mil livros no site da USP

A USP tem um site que disponibiliza 3.000 livros para download. Ao entrar no www.brasiliana.usp.br o internauta encontra livros raros, documentos históricos, manuscritos e imagens que são parte do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, doada à universidade.
Há planos de aumentar o catálogo para 25 mil títulos e incluir primeiras edições de Machado de Assis e de Hans Staden.

sábado, 18 de maio de 2013

Contexto histórico e poesia em Drummond

TEXTO LITERÁRIO E CONTEXTO SOCIAL:
O ENTRECRUZAR  DE FRONTEIRAS, NA OBRA A ROSA DO POVO,  DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Maria Isabel Londero

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo demonstrar a função social de um texto literário, bem como de seu escritor, procurando ressaltar a importância da relação entre forma poética e estrutura social. Definimos, no âmbito desta reflexão, como objeto de estudo os poemas José e Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade, ambos da obra A Rosa do Povo, publicada em 1945. Buscamos apresentar uma proposta de análise e de interpretação dos textos, a fim de demonstrar a consciência política de Drummond em meio ao impacto da experiência violenta e opressiva do Estado Novo no contexto brasileiro e da Segunda Guerra no contexto mundial.

PALAVRAS-CHAVE: Texto, contexto, autoritarismo.

INTRODUÇÃO

Nos trabalhos mais recentes sobre Literatura, a articulação entre o discurso literário e o contexto social – o espaço biográfico-psicológico e existencial do escritor – surge como elemento indispensável para a compreensão da obra literária. Vários estudos ressaltam a importância do contexto e sua significação para um entendimento mais amplo da mensagem que o artista tenta transmitir em seus escritos.

Seguindo nesta perspectiva, este trabalho tem como objetivo analisar alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade, procurando relacioná-los com o contexto histórico-social do Brasil e do mundo. Tentar-se-á chamar atenção para a função social  da obra e do escritor, bem como, demonstrar a relevância da relação entre forma poética e estrutura social.

 Relações entre literatura e sociedade

Cabe, de início, salientar que a função social do escritor é mostrar o seu mundo, dentro do mundo em que lhe foi dado viver. Para isto, o intelectual utiliza-se de palavras que figuram como seu modo de ação. No entanto, a tarefa de representar a realidade nem sempre é fácil, pois a escrita literária é muitas vezes condicionada pelo ambiente social, o que acaba inibindo o seu valor ideológico.

Faz-se necessário, também, ressaltar a complexidade que existe nas relações entre literatura e sociedade. Tais relações levam em conta, não só, o conteúdo social da obra, mas também sua influência na sociedade; a questão dos leitores; a sociologia do escritor, que verifica o meio e o tempo em que viveu e compôs sua obra. Neste sentido, o teórico Georg Lukács (1968: 15) ressalta a contribuição do elemento social na constituição da literatura. Com respaldo em idéias marxistas, ele expõe:

A gênese e o desenvolvimento da literatura são parte do processo histórico geral da sociedade. A essência e o valor estético das obras literárias, bem como a influência exercida por elas, constituem parte daquele processo geral e unitário através do qual o homem faz seu o mundo pela sua própria consciência.

Outro elemento que se reflete de maneira significativa no momento da produção de um texto é a história. Sabe-se que determinados aspectos históricos podem influenciar a produção literária de um certo período. Ao tratar da relação entre literatura e história, Antonio Candido (Apud Chaves, 1999: 09) refere-se à fronteira que se estabelece entre estes dois campos do conhecimento e atesta que

Só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. (...) o externo (no caso, o social) importa não como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.

A escolha desses poemas, portanto, não ocorre de forma gratuita. É, sim, decorrência de uma atitude consciente, que visa justamente demonstrar a importância de Drummond dentro da literatura brasileira, já que tais poemas são exemplos marcantes de uma postura crítica, participante e engajada socialmente.

A produção drummondiana representa a realidade de forma não idealizada. A ênfase de engajamento de seus poemas nas características contraproducentes da época de sua construção exibe a tendência de o escritor ater-se a seu tempo histórico. Neste sentido, Francisco Iglêsias (1990: 03) num artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 1990, expõe o seguinte:

Seu rico conteúdo seria a chave da alta compreensão histórica desse poeta que compreendeu o homem e a realidade social, transfigurando-a, pela beleza artística, em visão nada vulgar ou banal, mas antes superior como inteligência e penetração sensível.

A leitura dos poemas que seguem permite verificar a afirmação explícita de que a palavra poética atua de maneira decisiva como participação na vida e como forma de representação histórico-social.

JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta,
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?


Em conformidade com a idéia de que texto e contexto devem estar interligados, na análise do poema José  deve-se levar em consideração alguns traços sociológicos que contribuem para a atribuição de sentido ao texto. Cabe aqui lembrar que o poema está intimamente relacionado a acontecimentos históricos, os quais projetam conseqüências que repercutem no ambiente nacional e deixam marcas profundas na sociedade.

O poema foi publicado em 1942, ano de atuação do Estado Novo no Brasil. Desse fato decorre uma série de acontecimentos políticos e econômicos que irão assinalar a sociedade brasileira, tais como a repressão política; o preconceito institucional; a precariedade das condições de trabalho; a modernização industrial; a implantação e a afirmação de condutas autoritárias; a urbanização dispersiva. Esses acontecimentos tornam-se agravantes da situação de miséria enfrentada pela população e resultaram em uma disjuntura social. Desta, originou-se, principalmente, a desigualdade de privilégios concedidos à sociedade, intensificando, ainda mais, a formação de classes opressoras e oprimidas.

A figura de José vem nesse poema, justamente como representação de um problema coletivo. O poema todo está centrado na reflexão sobre a existência de José que resiste e segue vivendo. Começa e termina de forma interrogativa o que vem enfatizar o problema do direcionamento da existência.

Nos 5 primeiros versos tem-se a sensação de perda, de esvaziamento, que é transmitida através de uma seqüência de imagens que denotam uma situação sem saída.

O verso 7 apresenta-se de maneira ambígua. Drummond utiliza-se desse recurso com o intuito de chamar atenção do leitor, pois diante desta estratégia pode-se inferir que José tornou-se o interlocutor, ou então, que o leitor se identifica como José, sendo que tudo que é dito de José pode ser dito do leitor.

O caráter genérico do nome José, que serviria então para designar o ser humano em geral, transmite uma idéia de indiferença diante daquilo que não tem nome (v.8). Ou seja, José é apenas mais um na multidão.
Nos versos 13 a 18 o sujeito encontra-se sem condições de expressão. É assinalada a carência e a solidão vivenciadas pelo indivíduo que está impedido de seguir certos impulsos. O uso reiterado das expressões sem e não contribuem para reforçar a noção de carência que define a atmosfera do poema.

Os versos 19 a 27 trazem novamente a idéia de esvaziamento através do uso da expressão não veio. Esta idéia é enfatizada pela repetição do vocábulo tudo que denota generalização do vazio.

Na seqüência dos versos registra-se a inutilidade das tentativas de José para resolver seu problema. Nem os versos, nem o delírio, nem as leituras, nem a riqueza, nem a revolta, metaforizadas no texto, se mostraram suficientes para vencer a crise.

Para expressar a precariedade da existência de José, Drummond utiliza-se de expressões sem continuidade semântica, frases coordenativas, nas quais não há uma ligação das idéias entre si. Os termos não apresentam coerência do ponto de vista lógico. Nestes versos o sujeito remete ao passado e faz referências de forma fragmentária, pois todos os referenciais foram destruídos, o que fez com que se perdesse o sentido da existência.

Nos versos 45 a 51, a utilização dos verbos no imperfeito do subjuntivo compondo orações condicionais, anuncia a possibilidade de mudança que o verso seguinte desmente. Isso vem evidenciar que não há resolução para a dúvida em relação ao futuro, já que nem mesmo morrer vale a pena, pois não resolveria o problema.

O uso do verbo marcha expressa a única reação de José, que, sem ter nenhuma forma de apoio, nenhuma forma de liberdade, privado de qualquer recurso – parede nua, teologia, cavalo preto – recorre ao seu próprio corpo.

A riqueza de detalhes, o uso de linguagem subjetiva, a descontinuidade temática, a fragmentação da forma, o uso de figuras de linguagem, são recursos utilizados constantemente nos poemas de Drummond. Isso se deve ao fato dele incorporar em sua produção elementos da sociedade que se encontrava desestruturada e em conflito devido aos mandos e desmandos da elite para atender as exigências do  mercado capitalista.

Já  o poema Elegia 1938, serve como exemplaridade do alcance da visão de Carlos Drummond de Andrade. É, hoje, o símbolo maior do caráter de permanência da literatura como instrumento de releitura do mundo.

ELEGIA 1938

 Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
Á noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
A associação do vocábulo elegia ao ano de 1938 não se dá ocasionalmente. Drummond, mais uma vez, utiliza-se de grande perspicácia e inteligência. Elegia era o nome dado pelos gregos a um tipo de poesia cujo tema estava ligado à morte. Seu tom era, portanto, sempre triste, de lamentação. O ano de 1938 identifica-se, como se sabe, com um período de grande desenvolvimento industrial e uma grave crise social e política, que teria como uma das suas decorrências a Segunda Guerra Mundial.

Diante de uma situação de decadência, em que a sociedade perde gradualmente seus referenciais e trabalha para a construção de um mundo caduco (v.1), Drummond escreve um poema de crítica e lamento. Em todo o poema pode-se perceber a crítica à mecanização do homem e à falta de sentido da vida, cuja responsabilidade o poeta  atribui à Grande Máquina (v.11). Ao empregar  a expressão Grande Máquina, Drummond utiliza-se de uma metáfora para referir-se ao sistema capitalista que automatiza o homem (v.1) sem resolver os problemas básicos da existência, como frio e fome (v.4). Para justificar o posicionamento literário de Drummond, Alfredo Bosi (1994: 441) salienta que a “civilização que se forma sob os nossos olhos, fortemente amarrada ao neocapitalismo, à tecnocracia, às ditaduras de toda sorte, ressoou dura e secamente no eu artístico do último Drummond”.4

Já no primeiro verso do poema, a expressão trabalhas sem alegria vem evidenciar a mecanização das ações humanas. Essas ações por serem desprovidas de sentimentos, não guardam nenhum exemplo, não são, de fato, relevantes (v.2).

O homem é visto como parte de uma coletividade, pois sua conduta se restringe apenas à repetição de gestos universais (v.3) e os seus sentimentos são apresentados de forma banalizada, porque representam unicamente necessidades existenciais (v.4).

Drummond utiliza-se de ironia ao colocar lado a lado a imagem dos heróis que ”preconizam a virtude, a renúncia, o sangue frio, a concepção” (v.6) e a imagem dos homens que se arrastam pelas cidades, vítimas, exatamente, dos abusos e atrocidades de tais heróis.

A noite, diferentemente do que muitas vezes ocorre na poesia de Drummond, surge aqui como um tempo mais ameno, certamente porque nesse período é possível esquecer um pouco a violência da vida na sociedade industrial. Ou seja, ela figura como válvula de escape, como mascaramento da situação real. Nos versos 9 e 10, observa-se que o poeta lança mão de um interessante paradoxo, é quando dorme que o homem pode ficar mais protegido da morte, ameaça constante que a sociedade parece fabricar a todo momento.

O contraste entre pequenino e palmeiras (v.12) ilustra a situação do homem num universo desumanizado. O uso do adjetivo indecifrávei” aumenta o poder das palmeiras, pois além de grandes, surgem misteriosas. O que demonstra claramente as conseqüências do processo de industrialização e do sistema capitalista, que ocasionam inevitavelmente a separação das classes sociais, a diferença marcante entre pequenos e grandes, entre fracos e fortes.

Como parte da engrenagem que move a Grande Máquina ao homem não resta senão a atitude do conformismo. As expressões caminhas entre mortos e com eles conversas (v.13) sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito (v.14) denunciam a incapacidade de reação dos homens diante da complexidade dos elementos. Sendo assim só lhes resta ocuparem-se com futilidades (v.15 e 16).

A submissão às normas ditadas por um mundo caduco faz com que as tentativas de buscar a felicidade fracassem, o que desperta o sentimento de revolta e de frustração no homem.

A Ilha de Manhattan pode ser lida como uma metonímia dessa sociedade industrial moderna que espalha a guerra, o desemprego e a injusta distribuição. A exemplaridade do poema se dá justamente aí. Nota-se a referência clara à cidade de Nova Iorque, considerada, já naquela época, o grande centro financeiro do mundo, a grande sede do capitalismo.

A leitura deste poema, particularmente, demonstra que a poesia de Drummond permanece sempre atual, na medida em que nos sugere um questionamento sobre conflitos sociais recentes. O último verso do poema nos permite refletir sobre a possibilidade de relacionar o atentado terrorista de 11 de setembro aos Estados Unidos com a menção da destruição da Ilha de Manhattan feita por Drummond no poema.

CONCLUSÃO

As incongruências temáticas e formais presentes nas obras do escritor itabirano não permitem que seus poemas sejam lidos de maneira linear. É necessário construir o sentido do texto passo a passo, para que se possa chegar a uma compreensão do objeto de estudo. Tem-se a exigência de assumir uma postura ativa frente ao texto. E, com certeza, saber mais sobre o contexto em que estava inserido o escritor acaba contribuindo, e muito, na tarefa de compreensão através da atribuição de sentido. A complexidade de suas obras tem o intuito de instigar a reflexão por parte dos leitores. Esse parece ser o objetivo maior de Carlos Drummond de Andrade.

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS        

ANDRADE, Carlos Drummond de. José/ Novos Poemas/ Fazendeiro do ar. Rio de  Janeiro: Record, 1993.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

CHAVES, Flávio Loureiro. História e Literatura. 3. ed. amp. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 1999.

IGLESIAS, Francisco. Drummond: história, política e mineiridade. O Estado de São Paulo. São Paulo. 27 out. 1990.

LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 1968.


NOTA
[1] Aluna do 8º semestre do Curso de Graduação em Letras (UFSM), bolsista PIBIC/CNPq, participante do Projeto Integrado Literatura e Autoritarismo, sob orientação da Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach.


A Hora do Poema; Oswald de Andrade

Publicado em 20 de julho de 2012 | por Gustavo Magnani




É considerado pelo crítica o mais inovador poeta do modernismo. Entre todos, o mais rebelde. Promotor da Semana de Arte Moderna de 1922, incentivou toda originalidade e rompimento possível para a época. Foi autor de dois importantíssimos manifestos do modernismo; Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o mais famoso: Manifesto Antropófago.

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question.

Como já disse, por ser o mais inovador e radical dos modernistas, influenciou, obviamente, grandes nomes da poesia [que com o tempo, seriam conhecidos até como maiores do que Oswald]: Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Manoel Barros, e até o poeta francês Blaise Cendrars [está entre os 10 maiores poetas da França do séc XX]. Além de nomes, sua influência recaiu até em movimentos literários. O concretismo, podemos dizer, que é um filho de Oswald.

Como todos sabem, os modernistas buscavam uma cara pra cultura brasileira. Se Oswald foi o mais radical deles, certamente, buscava não só a cara, mas o corpo inteiro. Além disso, o poeta tratava sobre o povo, a cultura popular, a fala, o autoritarismo daquilo que chamamos de “cultura superior”. E é nessa mescla que trago 3 poemas de Oswald [todos muito curtinhos] que falam sobre os dois assuntos: tanto acerca do autoritarismo cultural, quanto do nacionalismo.

 

Esses três poemas de Oswald falam de algo bem atual. A linguagem falada. É preciso saber que a fala possui diferenças da escrita e que ela se transforma de acordo com a classe social, região, costumes, ambientes e tantas outras variantes. É notório que a grande parte da população não se deu conta disso e sai apontando dedo e discriminando logo que percebem um erro [estudantes da área condenam o uso do termo "erro", mas reitero que é apenas pra facilitar a compreensão da ideia. Afinal, o termo correto, segundo os mesmos, seria "inadequado"]. Oswald já sabia disso há quase 100 anos.

Imaginem, então, um poeta que defende o rompimento com praticamente tudo o que havia sido feito. Prega a transformação completa na poesia, promove um evento “escandaloso” para a época e, ainda por cima, defende a fala “errada”? Já vi pessoas acusarem Oswald de não incrementar complexidade na estrutura e composição do poema. Bem, posso estar errado, mas,  acredito que esse era o objetivo. Na hora de falar de algo simples de maneira simples, pra que usar da complexidade? É alinhar conteúdo e forma num único objetivo.

Não vou adentrar tanto nos meandros gramaticais etc, pois há tempos escrevi um texto acerca do assunto que acredito demonstrar bem o que eu e vários outros estudiosos pensamos acerca do assunto: Por que (Não) Ensinar Gramática Na Escola?

Um último ponto que quero tratar é no primeiro poema “Vício na Fala”, o penúltimo e último verso dizem “Para telhado dizem teiado/ E vão fazendo telhados”. Aí eu pergunto, pra que uma suposta e falsa complexidade? A ideia é simples: eles podem até falar teiado, mas, no final da contas, não deixam de fazer telhados. Os telhados não são furados ou mal feitos apenas por causa da palavra “teiado”. E esse é o ponto em que o poeta bate. Tanto na hora de defender a fala, quanto na hora de falar do Brasil.

Espero que tenham gostado do A Hora Do Poema desta semana. Deixem seus comentários acerca da obra e de Oswald. Vale a pena a gente discutir sobre o poeta e suas ideias. E claro, não esqueça de curtir! O literatortura e o modernista, agradecem.

Literatortura logoretirado do site: http://literatortura.com/2012/07/20/a-hora-do-poema-oswald-de-andrade/



Drummond: um pedra no meu caminho
Barros Alves

A cada dia surgem dezenas de artigos e ensaios com as mais disparatadas abordagens sobre a obra poética do modernista Carlos Drummond de Andrade, os quais vêm juntar-se a número idêntico que já enche livros e mais livros. E o saco da gente. A verdade, porém, - o que ninguém diz - é que Drummond não é lá essas coisas todas como poeta.. Noventa por cento do que ele escreveu, qualquer poetastro é capaz de escrever. Drummond é aquela pedra no meio do caminho da alta poesia, que não é mineira, nem brasileira, que não tem pátria. É simplesmente universal. Maior do que Drummond é Bandeira. Maior do que os dois juntos é o nosso José d’Abreu Albano. O que se diz (ou vier a dizer) em contrário, carece de um enorme esforço retórico para convencer as mentalidades bem informadas e sobretudo que sabem apreender a sonoridade de um bom poema. Não nos esqueçamos, todavia, de que um dos motivos pelos quais o Drummond poeta se alteou entre tantos melhores do que ele, é o fato de ter sido paparicado por muitos que fizeram dos meios acadêmicos instrumento de ceva de uma ensaística hermética que pouca gente lê e quase ninguém entende. Nesse paparicamento inclui-se a mídia amestrada pelo governo da época. Drummond foi Chefe de Gabinete do Ministro Gustavo Capanema, da Educação e Cultura, sob a ditadura getulista. Mas ainda hoje existem os "iluminados" pertencentes à escola dos que contribuíram decisivamente para o endeusamento de Drummond. E eles continuam à solta, escrevendo heresias críticas impunemente.
Não desejo ser incluído no rol daqueles partidários do "não li e não gostei". Portanto, em face de naturais exigências éticas, sou obrigado a mergulhar, vez por outra, em leitura de algum texto que me não agrada, por fastidioso e entorpecente que o seja. O exaltado, incensado e venerado Carlos Drummond de Andrade é uma dessas criaturas literárias, cuja criação, não de todo, mas em boa medida, me conduz ao bocejo e aos braços de Morfeu.. Ele, João Cabral de Melo Neto e uns outros tantos, achados maiores por grande parte da crítica e do público (este quase nunca sabendo o que diz porque sem a qualificação necessária para falar de estética literária) não me agradam. Leio-os tão-somente por dever de ofício, mas o faço com fastio e desprazer. Porque a produção deles (ou grande parte dela) não me convence como Poesia com P maiúsculo.
A poesia drummondiana não passa para mim de uma banda cabaçal desafinada (com perdão dos impagáveis irmãos Anicetos), pobre de ritmo, de sonoridade, de harmonia; frágil na retórica poética e rica de dicção discursiva. Desenxabida. Às vezes um verdadeiro "monumento de estupidez", como se constata facilmente na tessitura exaustivamente repetitiva do poema "No meio do caminho", cuja fama cresceu na proporção de sua ruindade enquanto poesia, se é que aquilo pode sequer ser considerado poesia. Com efeito, a retórica poética em Drummond configura um cansativo caminhar por desvãos que definitivamente não expressam o "sentimento do mundo" da Poesia sem adjetivações. Por estas e outras o poeta mineiro não me encanta, ainda que se diga à saciedade e quase unanimemente que a lírica (?) de Drummond "é freqüentemente considerada o ponto alto da poesia brasileira contemporânea", representando também "uma das realizações mais importantes da estética do modernismo..." (MERQUIOR, José Guilherme. "Verso Universo em Drummond.". Livraria José Olympio Editora/SCCT. Rio de Janeiro, 1975, pág.3). Ao discordar dessa unanimidade valho-me do dito atribuído ao irreverente dramaturgo Nelson Rodrigues, para quem toda unanimidade é burra. Ademais disto, o que não aprecio mesmo é a estética modernista: a retórica, a organização verbal e vérsica, a ausência da rima, a carência de encadeamentos rítmicos harmoniosos.
Quando leio Drummond e a maioria dos modernistas, desde os Andrades, o Mário e o Oswald, até o João Cabral de Melo Neto, uma voz ecoa no fundo do meu ser o pensamento do filólogo Segismundo Spina. Do alto de sua autoridade como Professor Emérito da Universidade de São Paulo, Spina atira contra a poesia dos modernistas e contra a do próprio Drummond: "Eu não tenho admiração por nenhum deles. Isso eu não considero poesia. Porque a natureza da poesia é outra (...) A poesia é um mistério, como a música é um mistério (...) Esses poetas modernos para mim não são poetas. Eles não têm a capacidade de criar em poesia (...) a verdadeira poesia conserva suas verdadeiras características iniciais: ritmo, cadência, um jogo de imagens e metáforas. Ela possui uma coisa que geralmente os poetas modernos não têm, que é a expressão inefável do sonho, daquilo que está na periferia da realidade, não na realidade." (SPINA, Segismundo. Entrevista. Jornal Folha de São Paulo, ed. 09.12.2001). O mestre da USP, autor de obras da maior importância para a crítica da poesia ("Na Madrugada das Formas Poéticas" etc.), ironiza os (des)caminhos da atividade poética através dos tempos, que desembocaram no arremedo modernista, incapaz de sobreviver sem adjetivações: "... poesia quadrada, poesia oblíqua, poesia concreta, cúbica, poesia letrista, poesia gráfica. Isto não é poesia." (Idem, ibidem).
Neste pé, mutatis mutandis, faz-se mister lembrar a apropriada observação do crítico literário Wilson Martins, ao ajuizar comentário sobre esses desencaminhamentos poéticos: "Mais ou tanto quanto o concretismo, o que parece esgotada pelo menos a julgar pelos praticantes contemporâneos é a poesia literária, com ênfase no adjetivo. Há evidente equívoco em equiparar a renovação poética à natureza ou personalidade dos produtores: a poesia não se renova por ser ‘negra ou feminista’. Renova-se quando mulheres e negros escrevem poesia de perceptível qualidade." (MARTINS, Wilson. "Promessa das Flores". Jornal O GLOBO, ed. 25.05.1999).
Estou convencido de que a ascensão de Drummond no conceito geral recebeu impulso substancial das suas boas relações políticas e/ou editoriais, o que não exclui a influência que um cargo de chefe de gabinete ministerial proporciona. Notadamente em um governo ditatorial. Ora, - relembremos - Drummond exerceu este cargo no gabinete do Ministro Gustavo Capanema, da Educação e Cultura. Os compêndios escolares, normalmente acríticos e literariamente incipientes complementaram o (des)serviço á formação da nossa juventude. Ouso dizer do vate itabirano o que Wilson Martins diz da tentativa que se intentou recentemente da "recuperação do complexo oswaldiano"; tudo não passa de uma empresa política empreendida por quem jamais o leu por inteiro. (Idem, Mitos Literários Jornal O GLOBO, ed. 22.10.2001).
O poeta de Itabira continua a ser intensamente, insistentemente revisitado. E não pára o beija-mão laudatório, a este tempo desnecessário tal o endeusamento do poeta por quem, ao que parece, não tem o que fazer ou não sabe fazer coisa melhor. Por que não aparece alguém disposto a fazer uma rigorosa garimpagem daquilo que é de fato poesia na obra do itabirano? De logo, estou persuadido de que será dura a empreitada de quem se dispuser a cumprir tal desiderato. Com espírito missionário, o empreendedor deverá munir-se de excelente batéia, fôlego e paciência para aturar o entediante estilo do macambúzio bardo. E não se espere incentivo nem mesmo do melancólico poeta, pois num rasgo de grande honestidade, Drummond compôs seu auto-retrato literário com grande sabedoria: "O Sr. Carlos Drummond de Andrade é um razoável prosador que se julga bom poeta, no que se ilude. Como prosador assinou algumas crônicas e alguns contos que revelam certo conhecimento das formas graciosas de expressão, certo humour e malícia. Como poeta, falta-lhe tudo isso e sobram-lhe os seguintes defeitos: é estropiado, antieufônico, desconceituoso, arbitrário, grotesco e tatibitate."(ANDRADE, Carlos Drummond de. Auto-retrato e Outras Crônicas. Editora Record, Rio de Janeiro, 1989, pág. 13). "Roma locuta, causa finita". Nada mais sincero e... real! Pelo visto só está faltando mesmo sinceridade nos comentadores da obra poética de Drummond.


 Carlos Drummond de Andrade



JOÃO MOURA JR.
Especial para o Estado



Os mesmos sem roteiro tristes périplos
Leitura cuidadosa dos versos de Drummond revela uma obra desenvolvida com rigor, marcada sobretudo pela alta qualidade, e confirma a aproximação, feita por estudiosos, do autor de `Impurezas do Branco' com outros grandes nomes da literatura do século 20, que são Graciliano e João Cabral


Prefaciando a Poesia de seu amigo e conterrâneo Emilio Moura, que o editor José Olympio reuniu em livro em 1953, Carlos Drummond de Andrade viu nela "a dramaticidade de uma contínua e irremissível perguntação". A observação se aplica, sem tirar nem pôr, à obra poética do próprio Drummond.
Também ela se coloca "sob o signo da pergunta", e basta folheá-la ao acaso para verificar a enorme quantidade de sinais de interrogação que a pontuam.
E às vezes as interrogações existem mesmo sem a presença visível de tais sinais, como na terceira e quinta estrofes do poema que abre essa obra em grande estilo, o Poema das Sete Faces:
O bonde passa cheio de pernas:
Pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
Não perguntam nada.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Se a ausência de vírgulas no segundo verso citado parece sugerir a mistura de pernas no bonde -- e, conseqüentemente, a mistura de raças que caracteriza a sociedade brasileira --, a ausência do ponto de interrogação nas perguntas dirigidas a Deus em ambas as estrofes denotam a falta de ênfase da poesia modernista em geral e da de Drummond em particular. Pois a característica do poeta mineiro que de imediato salta à vista é "o aspecto seco e antimelódico" de seu verso, para citar aquela que continua sendo a melhor análise de conjunto de sua obra poética, o ensaio de Antonio Candido intitulado justamente Inquietudes na Poesia de Drummond, incluído no livro Vários Escritos.
Secura - O crítico tem razão em aproximá-lo, sob esse aspecto, de Graciliano Ramos, o qual, segundo outro grande poeta, João Cabral de Melo Neto, limpa ao sol "suas mesmas vinte palavras (...) do que não é faca:// de toda uma crosta viscosa,/ resto de janta abaianada", referência provável à prosa adiposa de outro romancista seu contemporâneo, Jorge Amado. No plano internacional, o estranhamento que a dicção drummondiana trouxe à poesia do Modernismo brasileiro é comparável ao operado na moderna poesia italiana por outro gigante da lírica do século que finda, Eugenio Montale.
Mas, voltando às interrogações que perpassam a obra poética de Drummond, aquele que talvez seja o mais popular de seus poemas, José, do livro do mesmo nome, não é senão um desfiar de perplexidades. A estrofe final descreve assim o personagem, que pode ser qualquer um, mas que também pode ser um alter ego, uma máscara do poeta:
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Não deixa de ser curioso que o poeta se represente em movimento ao longo de boa parte de sua obra (Affonso Romano de Sant'Anna, em Drummond, o Gauche no Tempo, já havia observado uma "sensação de trânsito e transitoriedade" e a utilização de verbos indicativos de movimento em diversos poemas). É como se as inquietações que o assaltam lhe impusessem um ir e vir constante, freqüentemente interrompido por um obstáculo qualquer, uma pedra ou a "máquina do mundo". É o que ocorre em outro de seus poemas mais célebres, No Meio do Caminho:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra (...)
Antonio Candido, no ensaio citado, chamou a atenção para a leitura optativa facultada pelo terceiro verso, que pode ser fim do segundo ou começo do quarto. Assim, a pedra que barra o caminho do personagem-poeta é como que visualmente representada no poema. Por outro lado, a inversão, no quarto verso, das partes da oração que constitui o segundo (retomando, ao mesmo tempo, a construção do primeiro) dá a sensação de mecanismo emperrado, girando sobre si mesmo.
Esse ir e vir está graficamente presente em outro poema, desta vez do segundo livro, Brejo das Almas, que tem o título sintomático de Não se Mate.
O suicídio, por sinal, é um tema obsessivo em Drummond, e culminará com Homenagem, de As Impurezas do Branco, arrolando diversos nomes de escritores suicidas (o de seu amigo de toda a vida, Pedro Nava, certamente estaria entre eles, não fosse o poema anterior à sua morte; mas em A Um Ausente, incluído em seu último livro, Farewell, que põe um ponto final também em grande estilo numa obra que prima do começo ao fim pela qualidade, Drummond aborda o assunto de modo comovente). Não se Mate tem início com o poeta insistindo consigo mesmo, na terceira pessoa, para que se acalme em face dos imponderáveis do amor:
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será. (...)
Assinalemos, de passagem, a interrogação que, embora não formulada diretamente, encerra a estrofe. O que interessa sublinhar aqui é o deslocamento, ao longo do verso, do nome Carlos nas duas únicas outras vezes em que aparece no poema (sempre associado ao substantivo amor, que também só aparece nessas ocasiões). Na terceira estrofe:
O amor, Carlos, você telúrico,
A noite passou em você,
e os recalques se sublimando (...)
E na quarta e última:
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos (...)
Esse deslocamento se faz acompanhar do aumento de duas sílabas do primeiro para o segundo verso e de uma sílaba deste para o terceiro, sendo eles respectivamente um hexassílabo, um octossílabo e um eneassílabo:
Carlos, sossegue o amor (...)
O amor, Carlos, você telúrico (...)
é sempre triste, meu filho, Carlos (...)
Melancolia - Somado ao alongamento progressivo do verso, o deslocamento do nome Carlos representa visualmente o caminhar "melancólico e vertical" do personagem (José Guilherme Merquior, em Verso Universo em Drummond, chamou a atenção para o recurso freqüente ao zeugma semântico por parte do poeta, que neste caso une um atributo moral, a melancolia, a outro físico, a verticalidade). Por outro lado, o fato de o personagem atravessar de ponta a ponta os versos, assim como a rima toante do último com a palavra "claro" do verso que o antecede imediatamente no poema, praticamente um anagrama de Carlos, sugerem uma reviravolta, um girar sobre os próprios passos, ou seja, o ir e vir, o andar para lá e para cá típico de alguém desassossegado.
Deixando de lado essas minudências, vale a pena recordar um belíssimo poema pertencente a Novos Poemas, o livro imediatamente posterior à Rosa do Povo.
O título dele é Aliança, e descreve com delicada ironia a simbiose entre um homem e o seu cão. Este "viaja imóvel", dormindo enrodilhado no chão, provavelmente sob a mesa, já que o pé do homem -- o poeta -- "avança/ encontrando a tepidez do seu corpo/ que está ausente e presente,/ consciente do que pressão vale em ternura". Enquanto isso, à mesa, o poeta luta em vão por se exprimir -- luta essa dramatizada também em outro poema, O Lutador, de José, como lembra John Gledson em Poesia e Poética de Carlos Drummond de Andrade --, até que, irado, se ergue e o cão com ele:
(...) De um salto,
decapitando seu sonho,
eis que me segue. Percorro
a passos largos, estreito
jardim de formiga e de hera.
A inquietação do poeta, que o leva a caminhar a esmo, seguido pelo cão, parece não redundar em nada, até que, bafejado pelo que, à falta de melhor termo, chamaremos de inspiração, retorna à mesa e se põe a escrever, "arrumando esses bens/ em preto na face branca", o cão novamente a seus pés.
Trava-se então um diálogo entre o sonho recém-interrompido -- e que é como um regaço que se recompõe -- e o cão:
Baixa os olhos. Mal respira.
O sonho, colo cortado,
se recompõe. Aqui estou,
diz-lhe o sonho; que fazias?
Não sei, responde-lhe; apenas
fui ao capricho deste homem.
Negócios de homem: por que
assim os fazes tão teus?
Que sei, murmura-lhe. E é tudo.
Sono de agulha o penetra,
Separando-nos os dois.
Mas se...
As reticências com que finda o poema sugerem que o que não passaria à primeira vista de companheirismo canino talvez de fato fosse ajudazinha instrumental do sonho na súbita inspiração do poeta por intermédio dessa espécie de divindade doméstica rastejante. O que a princípio é um poema bastante simples sobre a "aliança" entre um homem e seu cão se mostra carregado de ambigüidades ao supor essa forma rebaixada de visitação da musa. Talvez por isso, Affonso Romano de Sant'Anna a tenha visto como "um sonho rejeitado" que persegue o poeta "pela realidade afora, apesar de decapitado"; por outro lado, mesmo assinalando a inaceitabilidade de tal interpretação e chamando a atenção para a afirmação do próprio Drummond, num texto de 1953, de que se tratava de um cão, John Gledson identifica aí uma "coisa" indefinível "porque completamente fora do alcance da consciência".
Mas o que quer dizer o poeta com esse cão hierofânico? Que a poesia, a despeito de toda idealização, obedece a leis insondáveis? Que somente assim é possível escapar ao malogro com que se encerram tanto O Lutador ("Tamanha paixão/ e nenhum pecúlio") quanto Procura da Poesia ("...as palavras./ Ainda úmidas e impregnadas de sono,/ rolam num rio difícil e se transformam em desprezo"), passada a euforia participante de Consideração do Poema ("...Tal uma lâmina,/ o povo, meu poema, te atravessa")? Bem feitas as contas, não deixa de ser apropriado àquele que, num dos mais belos poemas longos da poesia moderna em língua portuguesa, A Máquina do Mundo, de Claro Enigma, recusa o conhecimento dos segredos do universo que, numa visão, lhe é ofertado numa "estrada de Minas, pedregosa", já que "em vão e para sempre repetimos/ os mesmos sem roteiros tristes périplos", e segue "vagaroso, de mãos pensas".

O Estado de São Paulo,
Caderno 2,
16.12.2000


Alcides Villaça


O aceno definitivo de Drummond

Farewell'' surge (e por que só agora?) como o aceno definitivo que nos faz Drummond, caminhante desencantado, antes de desaparecer atrás da última ladeira. O poeta sempre estimou figurar-se numa estrada, numa rua, num caminho, como um ''gauche'' paralisado pela pedra-enigma, ou disfarçado num mítico e desengonçado elefante de fabricação própria, ou como o filho que um pai virgiliano conduz pelo reino dos mortos, ou como o divagante desistido das ofertas miraculosas da máquina do mundo.
Este belo livro não pretende o ''tour de force'' expressivo dessa trajetória, nem traz a revelação essencial poupada para a hora extrema. Já nos anos 60, com a melancolia da maturidade e os primeiros desprendimentos da velhice, o poeta firmara certa indisposição para prosseguir na luta com as palavras. O último poema de ''Lição de Coisas'' (1962) _livro marcado pela revisitação dos temas e por algum experimentalismo formal_ fechava-se com este terceto, no qual Drummond se dirigia à sempre esquiva Forma de todas as formas, para assim resignar-se: ''E não encontrar-te é nenhum desgosto/ pois abarrotas o largo armazém do factível/ onde a realidade é maior do que a realidade'' (''F'').
De fato: no livro seguinte (''Boitempo & A Falta Que Ama'', 1968) e nos demais, Drummond já não se empenharia em debater-se nas contradições mais fundas do sujeito ou em tensionar ao máximo a linguagem; passou a alargar generosa e detalhadamente os quadros das antigas percepções de menino e adolescente e a tratar do amor, das pessoas e das circunstâncias com o descompromisso de quem mais avalia a cena do que quem nela atua.
Adeus discreto ''Farewell'' poderia lembrar de imediato a família dos ''Boitempo'', mas agora todo memorialismo surge no registro grave de quem se dispõe à despedida definitiva, soturna e sem tragédia _como convém ao poeta de ''Claro Enigma'', que ora reafirma, de modo irrecorrível, o postulado schopenhaueriano da unificação universal do sofrimento. Não, ''Farewell'' não tem nem terá buscado ter, como conjunto, a pegada dos grandes livros dos anos 40 e 50, quando o poeta nos desvelava, em cadências, imagens e reflexões de beleza inexcedida, os custos da hesitação individual entre buscar objetivamente pertencer ao mundo intimamente condenado ou deixar-se engolfar em treva própria, refratária à mundanidade _na atração alternada pelo mito íntimo e pela história, pelo lirismo e pelo argumento, pela metáfora e pelo conceito.
Mas a luz definitivamente crepuscular que este livro faz incidir sobre todos os momentos anteriores oferece-lhes uma nova perspectiva de interpretação, tanto quanto podem ser eles essenciais a quem busque interpretá-los. O sentido deste adeus é discreta mas cerimoniosamente remetido à significação integral da caminhada; é a face última, que encerra uma sucessão de ''personae'' figuradas pelo caminho: o menino furtivo e imaginoso do sobradão e dos campos de Itabira, o adolescente rebelde dos internatos, o boêmio ''gauche'' e modernista da conservadora Belo Horizonte, o burocrata federal fabricante de símbolos sociais insustentáveis, o amargo e introspectivo Orfeu na nova ordem mundial, fria e cinicamente pacificada, o memorialista-cronista que volta a ''ser menino'' no direito conquistado da velhice.
Em ''Farewell'', o caminhante ao fim da linha carrega como relíquias algumas imagens obsessivas: as da múltipla Greta Garbo amada na tela, das pinturas dos grandes mestres, da senhorial e vasta casa paterna, das velhas e manipuladas fotografias, da aparição fantasmática da amada _o tesouro fragmentário que foi possível acumular em estoque que ora ao Nada se oferece: ''Quero a última ração do vácuo,/ a última danação, parágrafo penúltimo/ do estado _menos que isso_ de não ser''. Despedindo-se, Drummond aciona seu materialismo derradeiro (até onde um grande poeta possa ser materialista) com a consciência de quem, havendo-se inaugurado como um ''gauche'', sabe enfim que a melhor máscara tem pouca serventia diante da morte.
O leitor de ''Farewell'' transitará por poemas de valor desigual, mas haverá de se deter em muitos, como ''Unidade'', ''A Casa do Tempo Perdido'', ''A Ilusão do Migrante'', ''Aparição Amorosa'', ''Arte em Exposição'', ''Bordão'', ''Imagem, Terra, Memória'', ''Invocação Irada'', ''O Peso de Uma Casa'' _e em quantos mais recupere, pela linguagem lírica, a beleza construída e comungável. Linguagem lírica: esse discurso poético que pode revelar ao próprio criador uma imagem sua, logo reconhecida como a imagem de muitos.
O discurso poético de Drummond pautou-se quase sempre, e aqui também, por uma falsa antieconomia sintática, na qual os supostos acessórios tornam-se pontos decisivos para a cadeia substantiva das imagens.
A obsessão em voga pela síntese extrema, pelo mínimo de palavras, pela usura de nomes (curiosamente agenciada por quem prega as vantagens do consumo supérfluo), ignora que a relação de síntese poética que conta se dá entre as palavras materialmente apresentadas e o alcance da significação que irradiam.Por vezes, a verdade construída no plano artístico rende-se a outra, que nenhum homem pode construir.
A força particular de ''Farewell'' está em transcender, aqui e ali, o trunfo puramente estético do criador mais potente, para instalar-se no plano limiar da morte, de onde ilumina o já-perfeito. E o que ilumina? Alguns ''topoi'' da poesia drummondiana recebem, neste livro, a última demão de luz, antes da sombra final. O leitor reconhecerá essas derradeiras atualizações: a figura inaugural do ''gauche'' culmina na de ''O Malvindo''; as origens familiares e provinciais reinterpretam-se em ''A Ilusão do Migrante'', ''Imagem, Terra, Memória'' e ''O Peso de Uma Casa''; todos os cabarés mineiros vingam-se da hipocrisia oficial em ''Cabaré Palácio''; a condição de poeta-funcionário (magistralmente avaliada na crônica ''A Rotina e a Quimera'', de ''Passeios na Ilha'') sintetiza-se em ''Escravo em Papelópolis''; a pequenez do indivíduo diante do mundo grande torna-se cósmica em ''Noite de Outubro''; a especulação das palavras está em ''Verbos''... E que mais? O fundamental: a revisitação e o adeus às instâncias maiores, o Amor e a Morte.
Qualquer impasse romântico desses dois temas fundadores está decididamente afastado por um Drummond que deseja ''Não mais o sonho, mas o sono limpo/ de todo excremento romântico''.
Mas entre o desejar e o alcançar essa duvidosa paz sem nome, há que passar o poeta pela degradação da carne _o tema mais forte do livro. Aquele a quem já deprimia a ameaça das dentaduras duplas, na casa dos 50, vê agora o corpo descumprir os velhos pactos do desejo e arruinar-se na exalação da velhice, na ''envilecida carne sem defesa''.
Ainda aqui, no entanto, a oscilação de base entre o idealismo e o realismo, marca de brasa dessa poesia, deixa um vestígio pungente: a ruína do corpo ainda está habitada, e de dentro sai a voz para o alto: ''Ó minh'alma, dá o salto mortal e desaparece na bruma, sem pesar!/ Sem pesar de ter existido e não ter saboreado o inexistível./ Quem sabe um dia o alcançarás, alma conclusa?''.
Vestígio apenas resistente, é certo; somam-se mais intensamente os momentos da plena escatologia, nos quais a ironia acusa seu poder de autoflagelação (''aquela ferida que inflijo/ a cada hora, algoz/ do inocente que não sou?''), o chamar pelo outro faz-se inócuo (''Resposta nenhuma./ A casa do tempo perdido está coberta de hera/ pela metade; a outra metade são cinzas'') e as experiências repetidas reciclam o mesmo absurdo (''Como (...) suportar a semelhança das coisas ásperas/ de amanhã com as coisas ásperas de hoje?''). A unidade do mundo enfim se confirma nessa fatalidade de existir que une flores, pedras e animais; entre estes, não nos consola ''sequer o privilégio de sofrer''.
O sentimento amoroso dividiu-se, na formação do homem e na obra do poeta Drummond, entre a plenitude gozosa do prazer natural e o desejo do sublime, que aporta na melancolia. Referências um para o outro, o corpo que experimenta e o espírito que investiga contracenam duramente em toda a poesia drummondiana. Em ''Farewell'', o drama ainda se reencena, deixando-se resumir nos acordes em surdina do ''Bordão'': ''Em torno de um bordão organiza-se o espírito. (...)
Nada ocorre de belo, nada ocorre de mal/ fora da sonoridade do bordão''. As inflexões desse bordão organizam também o livro: as meditações cósmicas contraponteiam com muitos objetos de amor, a começar pela amada, fonte de consolo e tormento, e enlaçando a terra mineira, uma criança, um gato, um tucano morto, uns cavaleiros, uma tanajura.
Pragas do pieguismo num discurso assim polarizado, conduzido com determinação de mestre, as metáforas ganham um lastro reflexivo que só lhes aprofunda a beleza, ao mesmo tempo em que as restrições da avaliação crítica irrompem do fundo da experiência poética. Devemos à inteligência e ao lirismo da poesia de Drummond essa particularíssima projeção da afetividade singular nos quadros da vida social permanentemente avaliada, com o que soube o poeta afastar as pragas do pieguismo chocho ou o formalismo auto-suficiente, voltando-se para as contradições do sujeito moderno com o justo rigor de quem se identifica na negatividade e na ironia que lhe competem.
A iminência da morte não ajudou Drummond a vencer a última batalha, pois as mais terríveis palavras da poesia não dão notícia do silêncio puro, se o querem qualificar. Tudo o que ressoa como expressiva ausência é ainda obra delas, que cantam e desmentem seu poder de anulação.
A pasta de poemas organizados em ordem alfabética sob o título de ''Farewell'', guardada na gaveta, repõe com força propriamente material a questão agônica do poema ''Nudez'', de ''A Vida Passada a Limpo'' (1955): ''Minha matéria é o nada./ Jamais ousei cantar algo de vida''. A força da negação poética é diretamente proporcional à sua afirmação enquanto forma. O poeta mineiro bem o sabia, e por isso enfrentava também a força das interrogações, que lhe abriam caminho para novas negativas, numa cadeia dialética de paixões e desistências, de empenhos e braços caídos.
O livro-despedida, surpreendendo-nos quase dez anos depois de sua morte, encerra a última ironia de quem viveu essa separação projetando um reencontro de vingativa e profunda beleza. O fato também pode sugerir que nenhuma grande obra poética fica exatamente ''completa'': continua a refazer-se, menos pelo acréscimo de alguns originais insuspeitados do que pelas necessidades do público, que a confirmem como importante para a vida.
Efeitos muito objetivos sobrevêem à publicação de ''Farewell'': as futuras antologias devem prever espaço para novos poemas, os leitores mais jovens têm nas mãos o livro novo do morto consagrado e os leitores mais velhos reconhecem a voz nas novas modulações. O poeta tornou-se ele próprio uma ''Aparição amorosa'', a quem poderíamos devolver palavras desse poema: ''Já nem distingo mais se és sombra/ ou sombra sempre foste, e nossa história/ invenção de livro soletrado/ sob pestanas sonolentas''. Poderíamos, mas não devolvamos. Há uma tarefa a que toda beleza incita, que é prosseguir reinventando-a. A cada vez que se encontra uma forma própria dessa reinvenção, a ironia se livra da sombra do cinismo e se ilumina na praça como poesia furtada da morte.

Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP



(in Folha de São Paulo, 09/08/96, Jornal de Resenhas)

Drummond no revezamento das gerações



Celebrado em 'Farewell' como um mestre do passado, o poeta está sujeito ao parricídio dos seus sucessores. Livro póstumo prova que qualidade não é obrigatoriamente sinônimo de renovação.


Na conhecida "Antologia poética" (1962) de sua própria obra, Carlos Drummond de Andrade dividiu-a em veios temáticos que iam do indivíduo a uma "visão, ou tentativa, da existência", passando pela terra natal, a família, os amigos, o choque social, o conhecimento amoroso, a própria poesia e os exercícios lúdicos. Uma década depois, nas "Impurezas do branco", escrevia que "as matérias deste livro são Comunicação Persona Viver Amar Problematizar Morrer Divindade Quixotes Artistas Brasil Uma Casa" assim mesmo, com maiúsculas e sem vírgulas segmentadoras, sugerindo que tudo isso concorria, "ao mesmo tempo", para configurá-lo organicamente como poeta.
São temas que se reencontram, como é natural, em "Farewell" (Rio: Record, 1996), volume de originais inéditos, escreve Humberto Werneck no prefácio, "a que veio incorporar-se o poema 'Arte em exposição', inicialmente destinado a constituir livro autônomo", tudo acondicionado numa pasta de folhas datilografadas. No plano da qualidade, podemos imaginá-los disperses, sem incongruência, pela obra anterior, o que implica, é evidente, uma clara repetitividade ou, pelo menos, inevitável redundância. Àquela altura da vida, não seria de esperar, nem mesmo de desejar, que Drummond se renovasse ou renovasse a poesia brasileira. Lê-lo agora é como relê-lo, e isso pode causar alguma insatisfação, aliás injusta, porque, afinal de contas, esta é ainda uma das boas vindimas drummonianas.
Aqui está o "conhecimento amoroso", agora imerso nas consciência senil do pecado ("A carne envilecida'), mas também em memórias pungentes dos amores que se perderam no passado irrecuperável ("A grande dor das cousas que passaram", "Enumeração"), versos em que evocava versos de Camões, assim como Camões se havia identificado com Dante (Nessun maggior dolore ... ). Nessa linha, o poema mais belo do volume é a meditação sobre o conhecimento amoroso transformado no desespero dos amores extintos sob o signo do Tempo, valor supremo da criação poética ("Aparição amorosa"):
"Doce fantasma, por que me visitas/( ... )/Tua visita ardente me consola?/Tua visita ardente me desola./Tua visita, apenas uma esmola".
Outros fantasmas esvoaçam por essas páginas, a começar pelo do próprio poeta ("A casa do tempo perdido", "Imagem, terra, memória'), como nos versos finais: "0 tempo perdido certamente não existe./É o casarão vazio e condenado". O passado é, de fato, um casarão vazio, mas, ainda assim, repleto das "vozes queridas que silenciaram", como, no soneto de Verlaine chamado, precisamente, "Sonho familiar".
Desligar-se da família e do casarão correspondeu a desenraizar-se de sua natureza profunda e, por isso, sucumbindo às tentações o mundo, o poeta acabou por viver "A ilusão do migrante': 'Quando vim da minha terra,/ se é que vim da minha terra/ (não estou morto por lá?)/( ... )/ Ai de mim, nunca saí./ Lá estou eu, enterrado/ por baixo de falas mansas,/ por baixo de negras sombras, /por baixo de lavras de ouro,/ por baixo de gerações,/ por baixo, eu sei, de mim mesmo (... )"
Nem tudo, porém, se passa nessa atmosfera sufocante de nostalgia e tristeza. Mesmo o conhecimento amoroso pode despertar as harmônicas dos exercícios lúdicos, como na "Canção flautim", composta sobre essa rima saltitante e alegre: "Se gostasses de mim/- mirandolim -/eu morria. Morria?/de gozo no sem-fim."
A "própria poesia" está ligada, é inevitável, à ilusão evanescente da Glória e aos caprichos inexplicáveis da Fortuna (Duração"): "Fortuna, ó Glória, se evapora,/ e a glória se esvanesce, Glória./(...)/ Há de restar, Glória - ossatura/desfeita embora em linha espúria -/de modo, Glória, que a criatura,/morta, de amor ostente a fúria."
O indivíduo era a primeira das "características, preocupações e tendências' que lhe condicionavam a poesia, mas, aqui, cada momento, por um livro seminal: "A rosa do povo', em 1945, "Claro enigma", em 1951, e "Amar se aprende amando", em 1985. Como ele mesmo acentuava com uma epígrafe de Valéry, o trajeto levou-os dos acontecimentos efêmeros (como a guerra e as ideologias) para os acontecimentos entediantes (as ideologias e as guerras) dai para o acontecimento único que foi a liberação emocional, de fato, no indivíduo em sua última metamorfose a transformação do conhecimento amoroso em exercício erótico, outra face dos exercícios lúdicos, com a redescoberta do corpo superando as censuras mentais e morais da sociedade e da educação.
Não era, realmente, uma novidade na sua obra, mas foi preciso o jogo conjugado de dois fatores para que se decidisse ao salto definitivo, enfrentando o desafio da Glória, que o colocava acima do bem e do mal, predispondo-o à complacência de uma época liberada, e o do envelhecimento orgânico, tornando mais urgentes todas as impulsões fisiológicas: "Claro que o corpo não é feito só para sofrer, / mas para sofrer e gozar" (o poema "Missão do corpo").
Condicionando tudo isso, o sentimento obscuro de ter tido sobre o berço não a Fada Benfazeja das historietas infantis, mas o Anjo Torto que o condenava a ser o desajeitado sem remissão pela vida afora (0 malvindo"): "Vive dando cabeçada./Navegou mares errados,/ perdeu tudo que não tinha,/ Amou a mulher difícil./ Este, o triste cavaleiro/ de tristíssima figura (....
Aí está o Quixote incluído em sua temática sentimental, figura que falta, por inesperado, na galeria mussorgskiana dos seus "quadros de uma exposição". Lá estão, entretanto, alguns paradimágticos (Santa Teresa com seu orgasmo (sic), Miró, Goya), enquanto, de seu lado, ele parece reconhecer-se no "Auto-retrato" de Soutine: "Sou eu não sou eu?/Sou eu ou sou você?/ Sou eu ou sou ninguém,/ e ninguém me retrata?"
I'm Nobody!", escrevia também Emily Dickinson: "Who are you? Are yoy Nobody too?" "Meu nome é Legião, dizia, no entanto, o Diabo, o mesmo que presidia aos pecaminosos rituais eróticos de Drummond ("A carne envilecida"): "A carne encanecida chama o Diabo/e pede-lhe consolo. O Diabo atende/sob as mil formas de êxtase transido./Volta a carne a sorrir, no vão Intento/de sentir outra vez o que era graça/de amar em flor e em fluida beatitude./Mas os dons infernais são novo agravo/à envilecida carne sem defesa,/e nada se resolve, e o aroma espalha-se/de flores calcinadas e de horror".
Situado, já agora, entre os mestres do passado, Drummond, destina-se a sofrer o parricídio ritual com que as gerações artísticas se afirmam em face dos antecessores. É o que fazia Mário Faustino, Acusador Público do Tribunal Revolucionário, desde 1956, com clara precipitação. A literatura parecia-lhe uma cidade morta, povoada pelos fantasmas de um mundo desaparecido: "... há o sr. Carlos Drummond de Andrade... há o sr. João Cabral de Meio Neto... há o sr. Manuel Bandeira... há a sra. Cecilia Meirelles (... )."
O livro chamava-se "Poesia-experiência", e isso diz tudo, no momento em que o Concretismo e a Geração 45 proclamavam o fim definitivo da era modernista, aliás encerrada com o falecimento de Mário de Andrade em 1945 - o ano da "Rosa do Povo".





Sobre Drummond
Davi Arrigucci Jr.

SÃO PAULO - Para todos nós, Carlos Drummond de Andrade é a figura emblemática da poesia moderna no Brasil. Não creio que Manuel Bandeira seja, como muitos crêem, um poeta menor e inferior a Drummond, mas Bandeira é o grande poeta da passagem para a modernidade, enquanto Drummond é o poeta central da experiência moderna brasileira. Ao considerar este fato, dei com o seguinte ponto que me pareceu fundamental: tudo na obra desse poeta não acontece senão por conflito.

Realmente, tudo é conflitivo em Drummond. E conflitivo desde o começo de sua carreira. Ele experimentou contradições e dificuldades desde o início para forjar o denso lirismo meditativo que o caracteriza. Quando consideramos seus grandes poemas, logo nos damos conta do atrito dos elementos contraditórios e da densidade reflexiva de sua lírica. Até a figura humana do poeta, sua atitude característica, parece estar associada a essa densidade da reflexão: o ser e o dizer ensimesmado. É raro que uma foto sua escape ao ar pensativo com que nos habituamos a vê-lo.

E desde o princípio, estamos diante desse traço decisivo do estilo ou do modo de ser da obra: a exigência de uma mediação reflexiva para se chegar à poesia. Um caminho atravessado por dificuldades. Se compararmos com Manuel Bandeira, de imediato se notará a diferença: Bandeira dá a impressão da mais fluente naturalidade. O próprio Drummond chamou nossa atenção, porém, para a "fábrica altamente engenhosa" de Bandeira, como está dito em seus Passeios na Ilha, percebendo com precisão o quanto havia de cuidadosa construção naquela aparente espontaneidade.

A primeira impressão que nos dá Bandeira é a do poeta "ingênuo", na acepção que Friedrich Schiller empregou o termo no seu ensaio dos fins do século 18: Poesia ingênua e sentimental. "Ingênuo" seria o poeta que procede instintivamente, conforme a natureza, enquanto que "sentimental" - este seria o caso de Drummond - seria o poeta reflexivo, ou antes, o poeta que tendo se perdido da natureza busca, por meio da reflexão, restabelecer a sensibilidade "ingênua".

Com efeito, para Drummond a naturalidade parece constituir um problema, e a poesia, o objeto de uma procura dificultosa. Assim, a questão fundamental é esta poesia travada pela dificuldade que parece ser a sina drummondiana. Procura da Poesia é não apenas um dos melhores poemas de A Rosa do Povo, mas o traçado do esforço que caracteriza sua aproximação ao poético. E basta lembrar outros poemas na mesma direção, como Consideração do Poema, Oficina Irritada ou O Lutador, para sentir o peso dessa dificuldade e quanto a mediação do esforço reflexivo é uma exigência íntima para o poeta. Se dermos alguma folga aos conceitos de Schiller, Drummond será nosso poeta moderno e "sentimental". No caso de Bandeira, a criação poética se mostra como natureza prolongada e a crença na inspiração, na súbita manifestação do poético que constitui para ele o alumbramento, confirma o modo de ser "ingênuo". No entanto, sabemos que o alumbramento bandeiriano - essa linda palavra parece trazer consigo, pela trama dos sons, ecos simbolistas, entremeando luz à sombra e levando a "iluminação", a confundir-se com o mistério - é uma noção complexa. Exige do poeta uma atitude de "apaixonada escuta" e só se dá quando ela poesia quer, mas tampouco basta para concretizar em palavras a inspiração, uma vez que esta depende também dos "pequeninos nadas" da linguagem, que podem estropiar um verso ou uma imagem. Um poema pode ser, então, o resultado de um esforço construtivo de anos a fio: Bandeira gostava de lembrar a história de sua sofrida estatuazinha de gesso, renitente ao lacre verbal com que buscava encerrá-la num verso. E assim o Itinerário de Pasárgada é o caminho difícil da aproximação à poesia e a história da aprendizagem do ofício de poeta enquanto artista da palavra. Bandeira que acreditava na importância da inspiração até para atravessar uma rua, não tinha, porém, nada de ingênuo.

O caso de Drummond, porém, é mais complicado. Sua concepção do poético exige a reflexão como mediação necessária para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade de pensamento que é a reflexão tem uma origem romântica. Os pré-românticos alemães é que desenvolveram esse tipo de pensamento reflexivo que nasce como uma fantasia do Eu sobre o Eu, como uma forma de pensar sobre o pensar. É um pensar sem-fim que lembra o sonho, mediante o qual fundaram suas principais concepções.

O dobrar-se do Eu sobre si mesmo, tal como o leitor se depara na obra drummondiana parece evocar, então, a meditação romântica centrada sobre si mesma, sobre o próprio coração onde se acha o inalcançável da reflexão. A fórmula "O meu coração é maior que o mundo"exprime essa tendência do pensamento para o infinito e o que não se pode alcançar, a vastidão impreenchível do coração em que se perde o pensamento.

Na verdade, a reflexão se torna, para Drummond, a condição para chegar à poesia e, a uma só vez, a dificuldade que o impede de alcançá-la. Este é o paradoxo central de que parte sua obra, a contradição que está na raiz de seu percurso poético e que ele vive dramaticamente desde o princípio e não apenas, como se poderia supor, no tempo da madureza e dos densos poemas meditativos, à maneira dos Versos à Boca da Noite, um dos mais belos poemas que escreveu. Neste e em tantos outros, podemos sentir a presença viva da tradição da lírica meditativa do Romantismo que, nos países de língua inglesa deu a linhagem que de Shelley, Keats e Swinburne, vem até Yeats e alguns dos modernos, como o norte-americano Wallace Stevens.

Em Drummond sentimos a força do pensamento como em nenhum outro poeta nosso; e desde o começo, ele experimenta dramaticamente as contradições que enfrenta: seu lirismo nunca é puro, mas, sem prejuízo de sua alta qualidade, sempre mesclado de drama e pensamento. Alguns dos melhores críticos do poeta, como Antonio Candido, autor do notável ensaio Inquietudes na Poesia de Drummond, acham que a obra inicial, marcada pelo humor modernista, em linguagem anticonvencional e irreverente, se organiza em torno do fato. No meu modo de entender, porém, nunca se trata propriamente do fato direto, mas do fato envolvido pela reflexão; há sempre mediação do pensamento, e o fato surge interiorizado: é a repercussão do mundo na interioridade do Eu, no movimento característico da reflexão, do pensar sobre o pensar, mesmo nos poemas-piada.

Esse pensar sobre o pensar não tende apenas a criar uma infinitude da progressão no tempo; ele é também um infinito da conexão. Benjamin, que estudou detidamente a reflexão dos românticos em suas relações com o pensamento de Fichte, chamou a atenção para esse aspecto da questão, tal como aparece em Novalis, para quem pensar é conectar infinitamente... O chiste, o Witz dos pré-românticos alemães, é uma forma de conexão, de articulação de elementos díspares ou contraditórios. E a essa tradição pode ser conectado também o poema-piada modernista de Drummond.

No caso de nosso poeta, trata-se do diálogo com a herança romântica baseado numa atitude profundamente anti-romântica. Drummond é o primeiro a desconfiar de qualquer sentimento; é o primeiro a criticar e ironizar todo sentimentalismo, no sentido vulgar e lacrimoso do termo. Em Sentimental, famoso poemeto de Alguma Poesia - trata-se da anedota do namorado que tenta escrever o nome da amada com letras de macarrão e é impedido pela voz da família mineira: "- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!" - nota-se como os fatos se articulam com a reflexão nas complicadas dobras em que se envolve o sentimento na busca de expressão. O poema objetiva na cena figurada pelo Eu a situação exemplar de um idílio constrangido que serve, por sua vez, de mediação reflexiva para a dificuldade de exprimir o próprio sentimento, a confissão amorosa pura e simples. Vê-se como o poeta se perdeu da naturalidade, e a busca do natural deve ser mediada pela reflexão. Os fatos servem ao pensamento e só por meio deste se exprime o sentimento, transformado em sentimento refletido

O "poema-piada", designação ao que parece criada por Sérgio Milliet, facilita a compreensão do sentido humorístico reinante entre os modernistas, mas é muito diferente em cada um dos poetas, como se observa em Oswald de Andrade, Manuel Bandeira ou Murilo Mendes. Nas mãos de Drummond está realmente perto do espírito do chiste pelo casamento de comicidade com seriedade, de graça acintosa com severa gravidade, envolvendo a ambigüidade de tom própria da conexão dos elementos opostos. Raramente se observa a redução de seus poemetos do início ao mero anedótico: a articulação de elementos divergentes ou contrastantes conduz à ressonância dos fatos na alma, sem se esgotar na pura piada. Assim, por exemplo, num poema mínimo como Cota Zero ("Stop./ A vida parou/ ou foi o automóvel?"), a atitude de avaliação implicada no título e o tom interrogativo com que ela se desenvolve, no qual contrastam perspectivas diversas sobre coisas muito diferentes, põem em movimento reflexivo os ritmos opostos da província e da cidade grande, da existência arrastada e da máquina, do atraso e do moderno, mas também da cota de vida e de morte que um ícone da vida moderna como o automóvel introduz na avaliação da própria existência. Mínimo, mas complexo.

O chiste drummondiano é uma espécie de engenho poético associativo, que dá lugar à ironia porque permite uma avaliação refletida das coisas discrepantes que nele se juntam e se chocam, como num relâmpago iluminador. Embora o termo chiste não seja o ideal - ele não recobre exatamente o campo semântico do Witz alemão, ou do wit dos ingleses nem do mot d'esprit dos franceses - parece melhor, no entanto, do que o poema-piada. Em Drummond, ele constitui também um meio de articulação, ou seja, uma forma de sintaxe, através da qual a reflexão conecta a multiplicidade na unidade. É o que se pode constatar pela leitura analítica do Poema de Sete Faces, que abre seu universo lírico, sob o espírito do chiste.

Como vários dos grandes poemas de Drummond, este já foi muito citado e se incorporou à experiência banal do leitor, de modo que perdeu muito do poder de surpresa. É preciso restituir-lhe a força originária, pela leitura renovada. W. H. Auden afirmou certa vez: "(...) every poem is rooted in imaginative awe." E, de fato, essa raiz que o poema tem na surpresa, sua capacidade de despertar nossa imaginação pelo assombro, é preciso escavá-la pela leitura, deixando-a à mostra. No caso do Poema de Sete Faces, trata-se de resgatar até a sua dificuldade: a complexidade das múltiplas faces que nele se articulam, mas que começam por nos levar à perplexidade. A cada uma das sete estrofes, temos uma face nova e surpreendente, sem que se perceba de imediato a coerência do conjunto. Há uma lógica interna, no entanto, que é preciso desentranhar.

As sete estrofes são irregulares, assim como os versos, mas a irregularidade não é a do verso livre modernista, em que o poeta escapa aleatoriamente da contagem das sílabas, mas quase sempre para ajustá-lo, com base na entoação e nas pausas sintáticas, ao movimento do sentido, adequando o corte da linha à sentença. Aqui a discrepância não é muita e parece guardar ainda um senso da medida, com variações pequenas em torno das sete sílabas da redondilha maior. Irregulares, sem serem polimétricos ou completamente livres, mascaram a desordem, acompanhando as variações do assunto. Os mais discrepantes chamam a atenção, como este: Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Parece a combinação de um de nove sílabas com outro de sete, e nele se introduz o motivo fundamental do coração, ponto recorrente da interrogação reflexiva de onde se pode compreender as variações múltiplas e aparentemente aleatórias do assunto.

Basta parafrasear um pouco para se ter uma idéia da descontinuidade ostensiva da matéria, mas o princípio é a retomada de um lugar-comum da tradição. Com efeito, na primeira estrofe, temos a cena do nascimento maldito do poeta, um tópico rodeado de ecos bíblicos e modernos, até o célebre: Vai, Carlos, ser gauche na vida, uma visão paródica, rebaixada e irônica dessa verdadeira expulsão do paraíso. O termo gauche, galicismo corrente ao tempo do Modernismo, evoca a visão baudelairiana do poeta, no famoso L'Albatros: "Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!" A figura desajeitada e fraca - uma estrofe inteira desenvolverá aqui o motivo da fraqueza e do abandono de Deus - resultante desse destronamento paródico, ressurge submetida à errância do desterro transcendental.

Ocorre, pois, uma inversão realista de expectativas romanescas ou sublimes em torno da figura do poeta, enquanto ser bafejado pela inspiração divina, obrigado agora ao destino errante e dessacralizado na cidade moderna. Na segunda e na terceira estrofes se monta um cenário de cinema mudo, como numa comédia de Mack Sennett ou Carlitos, onde reinam os desejos frenéticos e desencontrados, às voltas com a idéia fixa das pernas. O motivo erótico rege a desordem urbana, tornando impossível toda harmonia: A tarde talvez fosse azul, /não houvesse tantos desejos. A intromissão de uma frase de elegância culta em meio à estripulia enumerativa das pernas demonstra como a mistura de níveis de estilo se tornou essencial à visão modernista de Drummond, certamente muito chocada pela novidade da cidade grande em contraste e confronto com as expectativas que deveria trazer seu olhar da província. Compacta nessa passagem, estará de fato contida toda a história de uma experiência pessoal e histórica, em seu trânsito de Itabira do Mato Dentro para Belo Horizonte e depois, o Rio de Janeiro: a mudança da província para a cidade grande, que longe de ser a Paris de Baudelaire, é apenas a metrópole brasileira em que o bonde tem ainda cara de novidade. Mas a mudança é grande para quem sai do interior e vem para a cidade desconhecida, pois para quem cumpre o percurso, o mundo é vasto e complexo. O tratamento realista e um tanto grotesco se ajusta a essa mistura discrepante da matéria, marcada pela fixação sexual, correspondendo concretamente a uma expansão da visão do mundo, de repente mudada pela chegada dos tempos modernos.

O que aqui se dá é a abertura ao sentimento do mundo que se expandiu após a Primeira Grande Guerra. É essa a experiência histórica básica que a poesia inaugural de Drummond traz consigo como uma descoberta pessoal, como algo intensa e dramaticamente experimentado até as camadas profundas de sua subjetividade, tocada pelas mudanças do mundo vivido. A poesia dessa descoberta, a princípio grotescamente materialista, parece aumentar aos olhos de hoje, recoberta por uma pátina de pureza lírica então inesperada, como o próprio poeta soube captar mais tarde, recordando os filmes de Carlitos que viu mocinho, no Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin.

O motivo das pernas contrasta com o tema meditativo do coração, introduzido pelo verso longo da terceira estrofe. Esse coração interrogativo pergunta pelo que não tem resposta. O homem sério que de repente aparece em meio à bagunça dos desejos, lembra a cara parada de outro cômico, Buster Keaton. Atrás de tudo, na defensiva, ele é uma espécie de raisonneur da comédia clássica, personagem que se interroga sobre o sentido das coisas e faz as vezes do autor, constituindo um notável contraponto à desabalada corrida atrás das pernas. Ele corresponde ao coração interrogativo, como uma outra face do Eu; por meio dele, percebe-se como o poema vai se armando como a imagem projetiva do sujeito, como a cena urbana em que pululam os desejos em desacordo é, como em Sentimental, um meio para a reflexão do Eu sobre o seu próprio sentimento de estar no mundo. O Poema de Sete Faces encarna o drama da expressão deste sentimento, cujo centro, o coração, fornece o caminho da reflexão e o princípio de coerência estrutural: por essa via, as múltiplas faces se articulam na unidade.

As duas estrofes que restam, tão famosas, recolocam o motivo do coração, centro irradiador do poema. Para nossa surpresa, agora vemos que o coração não é apenas o lugar da interrogação meditativa em contraste com a errância exterior do desejo, mas também o lugar da vastidão, do desejo ilimitado. Chegamos ao ponto do ensimesmamento e da descoberta de uma vastidão interior maior que a exterior. Este último aspecto se torna perceptível pela medida do coração quando relacionado com o vasto mundo: mais vasto é meu coração.

Esse sentimento da vastidão tem sido lido pela crítica como um sentimento egotista de onipotência do sujeito, arrebatado por uma ilusão juvenil de poder diante do mundo. Nesse sentido, creio, foi lido por Antonio Candido, no referido ensaio, em que formula as diversas equações entre o coração e o mundo ao longo da trajetória do poeta. Contudo, a coerência quanto à posição do sujeito, tal como apresentada desde o início do poema - o ser rebaixado, desajeitado e fraco que é o poeta, abandonado em seu exílio terreno - exige, ao contrário, que se considere a vastidão - lugar da falta que ama - a imagem do sentimento de não-poder do Eu, da impotência que é a base de sua visão irônica. O coração é o lugar do desejo impreenchível, do ilimitado, de que a vastidão é um símbolo.

O lugar da unidade, o coração, é também o lugar da multiplicidade, da máxima dispersão, o lugar onde, refletido, o sentimento de estar no mundo é também sentimento de não-poder. Por isso, também é aí que se aguça o senso de insuficiência da linguagem na qual não se encontra a consonância adequada à expressão desse ilimitado que não se pode dizer: aquilo a que falta nome. Essa insuficiência é ironizada na referência à rima; ao explicitar um procedimento construtivo como esse, o poeta dá curso ao tratamento cômico, de paródia e farsa, que adota em passagens anteriores, buscando por meio do chiste a conexão da matéria discordante. Sabemos que a rima, para que seja eficaz, deve configurar não apenas uma harmonia entre sons de palavras correlatas, mas corresponder àquela unidade entre som e sentido, cuja aliança secreta faz a força da linguagem da poesia, como notou Valéry. No caso, o que se explicita é a inadequação do procedimento, a desarmonia profunda que a rima não pode vencer, pois que será sempre aleatória e gratuita diante do que deveria exprimir, mas não pode. A insuficiência da linguagem, a luta por vezes vã com as palavras se formula como um problema já neste início da poesia de Drummond. A poesia, para este poeta "sentimental", se torna o produto de um esforço, de um trabalho difícil, mediado pela reflexão.

Essa impossibilidade de exprimir o que é necessário é dramatizada, no extremo, na última estrofe, e de novo ironicamente, como a cena de um idílio constrangido, análogo ao de Sentimental. Essa confidência difícil, tratada num quadro de conversa de botequim, mostra de uma vez por todas que o desajeitamento, a gaucherie do poeta, é a expressão condizente da naturalidade impossível: a natureza que se busca, porque já não se tem, é também uma problema para a linguagem. O fazer dificultoso ou problemático é uma exigência do que se procura exprimir. Desde o começo, portanto, dizer o que vai no coração é um caminho aporético, no qual se enfrenta o risco da não passagem, o infinito que desafia o dizer ensimesmado do poeta, debruçado sobre o próprio coração.

Visto assim, o Poema de Sete Faces, mediante o chiste, linguagem de articulação, dá forma unitária às discórdias do coração, que é preciso de algum modo exprimir: as faces tumultuadas que pululam no mundo mas se organizam como sentimento refletido na forma do poema. No princípio, o chiste é já meditação, e sua forma reflexiva prepara os grandes e longos poemas que virão depois e nos darão, por fim, o perfil fino e preciso de um Drummond meditativo.

Davi Arrigucci Jr., crítico literário e professor de Literatura na USP, especial para o jornal O Estado de São Paulo.

segunda-feira, 13 de maio de 2013



PATATIVA DO ASSARÉ

- Ave Poesia - 



Um filme documentário de longa-metragem de Rosemberg Cariry 

PATATIVA DO ASSARÉ – AVE POESIA 

(Patativa of the Assaré - Bird Poetry) 
Longa-metragem. Documentário. Cor e P&B. Tempo: 84 minutos. 

Realização: Cariri Filmes e Iluminura Filmes. Fortaleza-Ce. 2007 



SINOPSE

A vida e a obra do poeta Patativa do Assaré, a relevância dos seus poemas, o significado político dos seus atos e a sua imensa contribuição à cultura brasileira. Dono de um ritmo poético de musicalidade única, mestre maior da arte da versificação e com um vocabulário que vai do dialeto da língua nordestina aos clássicos da língua portuguesa, Patativa do Assaré é a síntese do saber popular versus saber erudito. Patativa do Assaré consegue, com arte e beleza, unir a denúncia social com o lirismo. Aço e rosa. Quem lê ou escuta a poesia de Patativa do Assaré pensa, emociona-se e conscientiza-se do mundo, porque na sua poesia estão presentes todas as lutas e esperanças do povo; estão reunidas palavras e idéias que se erguem com a dignidade guerreira dos justos, contra todas as formas de obscurantismos e de exploração do homem. No ano de 2001, Patativa do Assaré foi escolhido como um dos mais importantes cearenses do século XX. 


FICHA TÉCNICA:

Roteiro e Direção e Montagem: Rosemberg Cariry

Produção Executiva: Petrus Cariry e Teta Maia

Fotografia: Jackson Bantim, Ronaldo Nunes, Beto Bola, Kin, 

Rivelino Mourão, Luiz Carlos Salatiel e Fernando Garcia. 

Trilha Sonora: Patativa do Assaré, Fagner, Fausto Nilo, Mário Mesquita,

Ricardo Bezerra, Pingo de Fortaleza, Irmãos Aniceto e outros. 

Edição Digital: Kin, Débora Lima e Felipe Lobovsky

Edição de Som e finalização: Kin

Mixagem: Érico Paiva (Sapão) 

Produção de finalização: Severino Dadá

Coordenação de Produção: Adriana Amaral e Bárbara Cariry 



PATATIVA E A CULTURA POPULAR 


(Rosemberg Cariry) 


A cultura popular nordestina é uma cultura diversificada, rica e complexa, que vem plasmando-se, através dos séculos, com a contribuição de muitos povos e de muitas culturas, desde o processo de colonização até a contemporaneidade. Esta cultura popular, regional e universal ao mesmo tempo, é inesgotável fonte de renovação para os mais importantes movimentos culturais e artísticos do País. Impossível citar todos os nomes nos diversos campos das artes. Escritores, poetas, artistas e pensadores de todo o País têm obras fertilizadas com os signos da cultura nordestina. Se esta cultura pode oferecer elementos para a construção das artes contemporâneas e eruditas é porque tem a capacidade de também gerar seus próprios artistas, escritores e poetas, inseridos na vida cotidiana. E aqui falamos de artistas genuinamente populares, nascidos no seio do povo, aplaudidos e amados por esse mesmo povo. Como exemplo maior da força comunicativa e social da nossa poesia popular, temos Patativa do Assaré, um dos maiores poetas populares brasileiros de todos os tempos, síntese de todas essas vertentes, profundo elo que une o passado ao presente, projetando-se para o futuro. 


Mesmo hoje, após a sua morte, Patativa do Assaré é tido como uma referência literária popular já clássica. A sua poética foi estudada em centros acadêmicos na Europa e no Brasil, e o reconhecimento oficial veio através das muitas homenagens que recebeu de importantes instituições acadêmicas como o título de doutor "Honoris Causa" da Universidade Regional do Cariri, da Universidade Estadual do Ceará e da Universidade Federal do Ceará. Em 1995, recebeu das mãos do Presidente da República, em ato público no Teatro José de Alencar, prêmio do Mérito Cultural do Ministério da Cultura, além de dezenas de outras comendas e títulos, em todo o País. 


Basta dizer que, Mesmo quando ainda era violeiro e encantava os sertões com o som da sua viola e a beleza de seus versos improvisados, a sua fama já chegava aos salões literários das grandes cidades, e a sua obra despertava o interesse de renomados escritores e intelectuais brasileiros. Patativa do Assaré é um cristão primitivo e radical que bebeu na fonte do melhor humanismo. Se o Brasil não tem ainda o seu poeta-nacional, que simbolize e expresse o sentimento de nação, como Garcia Lorca na Espanha, Pablo Neruda no Chile, Camões em Portugal ou Nazin Hikmet na Turquia, o Nordeste, popular e rebelado, tem o seu: PATATIVA DO ASSARÉ. 


Realizar um filme documentário sobre Patativa do Assaré foi desvendar não apenas a biografia e a obra de um poeta, mas mergulhar no vasto oceano da cultura coletiva e tatear os caminhos onde a história individual se encontra com o destino histórico de todo um povo. Para elaboração deste trabalho, foram pesquisadas muitas fontes escritas e da tradição oral; muitos registros audiovisuais e iconográficos. Todo este material, rico de informações e de suportes variados, destaca a relevância da obra patativiana, o significado político dos seus atos e a sua imensa contribuição à cultura brasileira. 


Patativa do Assaré participou de importantes momentos políticos brasileiros: Ligas Camponesas, resistência à ditadura militar, campanha pela Anistia e pelas Diretas Já. Na aérea cultural, foi homenageado pela Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência (1979) e participou ainda dos principais movimentos culturais do seu tempo: Movimento de Cultura Popular (MCP – Recife), Festivais de Música Popular Brasileira, Grupo de Arte Por Exemplo, Movimento Nação Cariri e Encontro das Culturas Populares do nordeste, entre tantos outros. A partir de 1970, Patativa do Assaré passou a simbolizar para os jovens nordestinos uma voz da resistência e das lutas democráticas. Além da imagem “oficial” do poeta, o documentário mostrará aspectos do trabalho na roça, do cotidiano com a família e com os amigos, no sítio Serra de Santana e na cidade de Assaré, onde era chamado pelo nome carinhoso de “Senhorzinho”. 


O FILME 


A narrativa histórica e biográfica se inicia com o velório de Patativa do Assaré (2002) e, a partir daí, é contada a sua vida, com referências a acontecimentos pessoais e históricos. A cronologia dos acontecimentos políticos e culturais brasileiros, bem como os fatos marcantes da vida do poeta, redimensionados pela mediação da sua poesia, é intercalada com depoimentos e análises críticas da sua obra, de forma a fornecer um panorama amplo e de compreensão profunda da poética patativiana e do universo da cultura popular. 


O filme é o resultado de muitos anos de vivências e pesquisas. Filmamos e gravamos ao longo de 27 anos. Amigo e compadre do poeta, fui registrando em cinema (super-8, 16mm e 35mm) e em vídeo (S-VHS, Hi-8, U-Matic, Betacam, Digital Vídeo), desde o ano de 1978, muitos aspectos da vida do poeta: o cotidiano na roça e na cidade do Assaré, os recitais, as entrevistas coletivas, as participações em movimentos sociais e políticos, os depoimentos, as gravações de discos em estúdio, os shows com outros cantores, as festas de aniversário, as doenças, os internamentos, até o momento final: a sua morte. Este imenso esforço de preservação da memória do maior poeta popular brasileiro de todos os tempos resultou em mais de cem horas de imagens de grande valor documental, cultural/estético e, sobretudo, humano. A este arquivo, vieram juntar-se muitas outras horas de gravações em vídeo coletadas em TVs do Nordeste e do Sudeste e em arquivos particulares espalhados por todo o País. 


Além das imagens documentais de Patativa e dos acontecimentos históricos, foram usados também jornais de época, reportagens de TVs, registros de feira, programas de rádio, recortes de jornais, shows musicais, textos narrativos, poemas e canções. Todo esse material jornalístico e documental, de arquivos, de cinematecas e de TVs, constitui parte da narrativa, muitas vezes, como “complexo virtual”, em que as imagens da ficção (representações do cotidiano do poeta) são montadas com as imagens documentais de arquivos, de tal forma que a ficção não se separe do cotidiano, nem o sonho se separe da realidade. É, por exemplo, o caso dos seus poemas, que vão carregando de significado as imagens históricas do tempo da ditadura militar. O processo de pós-produção digital permitiu que imagens de arquivo e imagens gravadas em vídeo digital, imagens velhas e danificadas, sons novos e sons antigos, fossem trabalhados em seus contrastes, cores e texturas, dando ao filme uma estética bem determinada. 


No filme, a realidade ordinária é transfigurada pela poética das velhas imagens e pela oralidade das palavras. As palavras do poeta Patativa revelam e dão novos significados às imagens, e, assim, palavras e imagens nos mostram a história e a vida, na qual nos inserimos, como membros que somos desta fabulosa comunidade de destino que chamamos Brasil. O equilíbrio entre as imagens de arquivo, do cotidiano do poeta, da cultura popular e dos acontecimentos sociais e políticos dão ao documentário um ritmo uma viva pulsação de emoções e idéias. Alguns poemas mais importantes, como A Morte de Nanã e A Triste Partida, são apresentados com poucos cortes, por conta sua importância poética e densidade dramática. A idéia é fazer com que o filme tenha a singeleza e importância de um conversa de roda, de uma narrativa popular feita por um poeta-mestre, destas que a gente escuta sentado nas calçadas das casas sertanejas, ao anoitecer, enquanto se espera a fresca do vento Aracati. 


O filme documentário Patativa do Assaré – Ave Poesia é, portanto, uma obra importante na preservação para gerações futuras de aspectos fundamentais da vida e da obra desse poeta popular que se transformou em um patrimônio cultural e afetivo do povo brasileiro.
Postado por Patativa, o Filme às 09:24 0 comentários
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Ave Poesia!

Pra gente aqui ser poeta
Não precisa professô
Basta ver no mês de maio
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô.


 Patativa do ASSARÉ
“A literatura popular existe em outros países, mas nenhuma é tão relevante quanto a do Nordeste (…) Aqui, no Nordeste, ela resiste e se transforma cada vez mais.”