Deixem seus comentários, obrigado!

Deixem seus comentários, obrigado!

terça-feira, 30 de abril de 2013


Análise de A rosa do povo de Carlos Drummond de Andrade- Café com Poesia

CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL

Os poemas de A rosa do povo foram escritos entre 1943 e 1945, quando os horrores da II Guerra Mundial angustiavam a humanidade e o exército nazista recuava, especialmente na extinta União Soviética. Graças à obstinação heróica do povo russo e sua imensa capacidade de sacrifício, as melhores divisões alemãs tinham sido desbaratadas no leste europeu, prenunciando a capitulação do III Reich.
À angústia da época somava-se, pois, uma reverência comovida da civilização ocidental aos soviéticos. O confronto capitalismo x comunismo, que se desenhara desde 1917, estava momentaneamente eclipsado na união de esforços contra o nazismo. Stálin não era mais o ditador monstruoso da década de 1930, mas um dos líderes da luta contra a barbárie. Havia, portanto, nos meios intelectuais e artísticos não-comunistas, uma empatia não apenas com o povo russo, mas com o regime que mobilizara a sua enorme população para uma guerra justa.
Simultaneamente, no Brasil, o Estado Novo – autoritário, policialesco, ainda que economicamente modernizador e socialmente avançado (sob o comando de Getúlio Vargas) – perdia o apoio entre as classes médias e as elites intelectuais(1) que aspiravam a um regime democrático. Neste caldeirão de conflitos e circunstâncias dramáticas, o foco poético de CDA – até então centrado mais na subjetividade e no individualismo do eu-lírico -deslocou-se para uma ênfase no histórico-social .
Anos depois, o autor explicou esta tendência de A rosa do povo como uma tradução daquela época sombria:
“... obra que, de certa maneira, reflete um “tempo”, não só individual mas coletivo no país e no mundo. 
(...) Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário.” (2)
(1) Elites estas muitas vezes identificadas com o próprio regime através de altos cargos burocráticos exercidos por escritores, jornalistas e pensadores. Getúlio Vargas atraiu para o seu projeto centenas de intelectuais. O próprio CDA foi secretário de Gustavo Capanema, Ministro de Educação e Cultura. Talvez isso em parte explique uma subjetiva sensação de culpa que percorre vários poemas participantes do autor. 
(2) Nos anos subseqüentes à publicação de A rosa do povo, Drummond desilude-se completamente com o regime soviético e abandona suas posições esquerdistas.

UMA OBRA INOVADORA

Em seu conjunto, A rosa do povo traz importantes novidades:
1) É a mais extensa de todas as obras de CDA, composta por 55 poemas. Embora em seu próprio título haja uma simbologia revolucionária, sem contar o número expressivo de poemas socialmente engajados, A rosa do povo apresenta grande variedade temática e técnica;
2) Quase todos os poemas têm uma dimensão metafórica, apesar da linguagem aparentemente clara. Com freqüência, também nos surpreendemos com inesperadas associações de palavras, elipses, imagens surrealistas. Trata-se de poemas refinados, complexos e acessíveis somente a leitores com significativa informação poética. Paradoxalmente – como notou Álvaro Lins – a obra em que CDA mais se aproxima de uma ideologia popular é, na verdade, dirigida apenas a uma aristocracia intelectual.
3) A rosa do povo representa, na poesia de Drummond, uma tensão entre a participação política e adesão às utopias esquerdistas, de um lado, e a visão cética e desencantada, de outro lado. Não devemos entender esta duplicidade (esperança versus pessimismo) como contraditória. Toda a obra do autor (incluindo-se aí a amplitude de assuntos da mesma) é marcada por uma visão caleidoscópica, polissêmica.
A realidade, para ele, tem várias faces. Faces descontínuas, irregulares, opositivas. Tentar captar a essência humana é registrar ambivalências, ângulos variados. Nunca há em Drummond uma palavra definitiva, uma visão final. O fluxo desordenado da vida não permite uma única certeza, uma única convicção. Perceber a poesia de CDA como reflexo desta rica e quase caótica diversidade é o começo de seu entendimento.
4) O poeta vale-se tanto do “estilo sublime” (padrão elevado da língua culta) quanto do “estilo mesclado” ( linguagem elevada e linguagem coloquial).
5) Os versos, geralmente curtos das obras inaugurais, tornam-se mais longos. Há um predomínio do verso livre (métrica irregular) e do verso branco (sem rimas).
6) Ainda em relação às obras anteriores, o humor quase desaparece, o coloquial é atenuado e um tom grave e solene passa a impregnar os versos.
7) As inquietações sociais anunciadas em livros anteriores como José e Sentimento do mundo – ainda vagas e mais ou menos abstratas – ganham, em A rosa do povo, plena historicidade, referindo-se várias vezes ao cotidiano, quando não a acontecimentos concretos da década de 1940.

TEMAS BÁSICOS

Valendo-nos de óbvia simplificação didática, podemos dividir os poemas de A rosa do povo em sete áreas temáticas(3). É claro que, dada à complexidade dos versos drummondianos, muitos desses poemas podem ser enquadrados em mais de um núcleo de assunto. No entanto, a divisão abaixo corresponde a um esquema estabelecido pelo próprio escritor em sua Antologia poética:
- a poesia social;
- a reflexão existencial (o eu e o mundo);
- a poesia sobre a própria poesia;
- o passado;
- o amor;
- o cotidiano;
- a celebração dos amigos;
(3) Além deste espectro de motivos, pode-se assinalar a existência de um texto paródico: Nova canção do exílio.
A Rosa do Povo- parte 2
1- A POESIA SOCIAL
Pelo menos duas dezenas dos cinqüenta e cinco poemas de A rosa do povo podem ser
enquadrados nesta tendência na qual a angústia subjetiva do poeta transforma-se em engajamento e compromisso com a humanidade.
De certa forma, é possível distinguir neles uma espécie de seqüência lógica que revela as mudanças de percepção do poeta face ao fenômeno social. Este processo temática não é unívoco, sendo composto por mais ou menos quatro movimentos muito próximos e que, na sua totalidade, formam a mais elevada manifestação de poesia comprometida na história da literatura brasileira. Vamos encontrar então:
- a culpa e a responsabilidade moral;
- o registro puro e simples de uma ordem política injusta;
- a passagem da náusea à perspectiva de uma nova sociedade (em termos concretos e em termos abstratos);
- a celebração da nova ordem.
1. 1 – A culpa e a responsabilidade moral
A repulsa ao egocentrismo e a abertura em direção à solidariedade estão representadas por dois poemas totalmente simbólicos e despidos de referências à historicidade e ao cotidiano: Carrego comigo e Movimento da espada.
Carrego comigo
Neste texto, – composto por vinte e três quartetos com versos metrificados de cinco sílabas (redondilha menor) – o poeta começa aludindo a um misterioso embrulho que porta consigo, sem, no entanto, identificar o seu conteúdo:
Carrego comigo
há dezenas de anos
há centenas de anos
o pequeno embrulho. (...)
Não ouso entreabri-lo.
Que coisa contém,
ou se algo contém,
nunca saberei.
A única decifração do embrulho reside no fato de que o poeta ao invés de carregá-lo parece
carregado por ele e de que perdê-lo significaria “perder-me a mim próprio”. No desfecho do poema há a revelação de que o embrulho destrói a solidão e confere um sentido à liberdade de quem o carrega, porém o seu conteúdo não é explicitamente referido. Cabe ao leitor resolver o enigma, mas não é muito difícil supor que o embrulho é o peso da consciência moral do poeta.
1. 2 – O registro da ordem política injusta
Ainda que toda a sua poesia social submeta a ordem vigente a um inquérito implacável, há sempre nestes poemas a indicação do novo, ou pelo menos das lutas que indivíduos, classes e povos travam para impugnar a injustiça do planeta. No caso de O medo, entretanto, a esperança ou o enfrentamento não se delineiam e o resultado é um dos textos mais opressivos de toda a obra de CDA.
Os versos irregulares, (embora um bom número deles tenha sete sílabas) não impedem a criação uma cadência grave e soturna, nascida da repetição exaustiva da palavra medo. No desenrolar das quinze estrofes do poema, essa palavra e aquilo que ela traduz no contexto da época (ditadura, prisão, tortura, guerra, massacres, etc.) vão tecendo uma rede de tentáculos sobre os seres, impedindo-os de pensar, protestar e agir. A primeira estrofe já é elucidativa desta impotência(5):
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
O poema prossegue misturando referências objetivas (“E fomos educados para o medo.”) a outras, mais metafóricas: (“Cheiramos flores de medo. / Vestimos panos de medo.”). Toda a ação humana parece programada para evidenciar o império do pânico (“Faremos casas de medo / duros tijolos de medo, / (...) ruas só de medo e calma.”) 
Na sétima estrofe, insinua-se a possibilidade da rebelião:
Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Porém esta ânsia libertária não se torna consistente, esmagada pelo terror frio e insidioso que se introjecta nas almas das pessoas, a tal ponto que até mesmo os filhos herdarão a falta de coragem de seus pais e nada restará à humanidade senão o “baile do medo.”:
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo
Depois do mundo, as estrelas
dançando o baile do medo.
(5) Além da impugnação desta era de medo, CDA deixa transparecer no poema a sensação de culpa e de responsabilidade – que o acomete com freqüência, como vimos no item 1. 1 – frente ao desarranjo social.
1. 3 – A passagem da náusea à perspectiva de uma nova sociedade:
Neste bloco, encontramos um significativo número de poemas. Eles refletem a transição de um clima acabrunhante – no qual um indivíduo em crise e um sistema desolador se identificam – para uma atmosfera radiosa de esperança e afirmativa do novo.
Dentro desta ótica são escritos dois dos mais importantes poemas de A rosa do povo: A flor e a náusea (ver análise específica no fim deste trabalho) e Nosso tempo. São também os mais concretos pois aludem diretamente ou indiretamente à realidade objetiva. Neles, o sentimento de culpa é substituído pela noção de náusea: a náusea existencialista, à maneira de Sartre, que, mais do que uma sensação física de enjôo, é uma situação de absoluta liberdade de quem a vivencia. Liberdade no sentido da destruição de todos os valores tradicionais, da morte de todos os deuses e crenças. A náusea decorre desta liberdade aterradora, próxima do absurdo. O homem, despojado de suas antigas certezas, vaga num universo de destroços, porém, ao mesmo tempo que o tédio e o desespero o ameaçam, este mesmo homem pode, na grande solidão em que se converteu sua vida, encontrar uma alternativa válida de existência individual e coletiva.
Nosso tempo
Nos oito pequenos cantos que o compõem, nos versos irregulares, nos símbolos intrincados, nas imagens surrealistas (“Tempo de divisas, / tempo de gente cortada / e mãos viajando sem braços, / obscenos gestos avulsos.”) e nos instantâneos realistas – quase cinematográficos – da vida coisificada das massas urbanas, CDA elabora em Nosso tempo um “admirável afresco da alienação contemporânea”, no dizer do crítico José Guilherme Merquior.
Há uma visível ambivalência no dístico que abre o poema:
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Por um lado, partido conecta-se com política, com opção ideológica da qual ninguém poderia se furtar no contexto radicalizado dos anos de 1940; por outro, significa o homem mutilado, danificado tanto pela guerra como pela cidade opressora que esmaga corpos e consciências.
Na segunda estrofe, surge o poeta (expressando o coletivo), seguro da inutilidade de seus livros, viagens e visões falsas: “Em vão percorremos volumes, / viajamos e nos colorimos”. Surge também a rua, cheia de tensão pela perspectiva da hora da mudança e pelos sonhos de sobrevivência dos homens comuns. A ordem burguesa está em crise: “Meu nome é tumulto”, grita o poeta, que, simultaneamente, na voragem de sua liberdade absurda, procura uma alternativa: “Onde te ocultas, precária síntese?”
As palavras do homem revoltado querem explodir para impugnar este “tempo de muletas”, tempo de aleijões morais. Muitas pessoas, também elas vítimas do processo de mutilamento, guardam segredos que serviriam para consolidar uma revolta comum e estabelecer laços de companheirismo neste universo de solidão e egoísmo. O poeta – numa vertiginosa enumeração caótica – pede que elas se abram e contem o que sabem, invocando inclusive a fala de insetos e objetos:
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco
pessoas e coisas enigmáticas, contai, (...)
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.
Após invocar a fala e o grito rebelde, o poeta reconhece no canto IV, que o “meio silêncio”, o “murmúrio” e a “palavra indireta” são quase um imperativo de sobrevivência num tempo de ameaças, espreita e delações. Afinal, “o espião janta conosco”.
Se até então as imagens do texto parecem vir da interioridade do poeta em sua relação agoniada com o mundo, a partir do canto IV elas adquirem autonomia e se independem do eu-lírico. São imagens que surpreendem o vazio e a coisificação da vida citadina, em quadros realistas e surrealistas de impressionante vigor poético. Homens escravizados pela rotina, massacrados pela mediocridade de seus empregos burocráticos, indiferentes aos horrores da sociedade industrial/capitalista, multidão de zumbis cujos corpos pouco a pouco viram coisas na repetição exaustiva e alienada dos mesmos gestos:
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.
Seres e objetos se nivelam em um universo de vulgar materialismo. Como escravos desprovidos de esperanças, voltam para suas casas, imaginando que estão numa cidade (lugar humano), quando na verdade estão soterrados pelo caráter ínfimo de suas vidas quase vegetativas, onde até os muros (os delineamentos da realidade) se apagam, se esfumam nas sombras:
Escuta a hora espandongada* da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Nas estrofes VI e VII, as imagens voltam a expressar a náusea e a revolta no poeta, ainda que de forma elíptica e metafórica, porém, na estrofe VIII todas as insinuações vagas e retorcidas contra a ordem vigente são substituídas por uma declaração intensamente panfletária que fecha o poema(4):
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
* Espandongada: desengonçada, rota.
(4) José Guilherme Merquior mostra como Drummond não consegue distinguir capitalismo e sociedade industrial de massas. Ao identificá-los, ignora que o socialismo soviético também construiu a sua multidão de trabalhadores robotizados e burocratas infelizes e que nenhuma formação industrial contemporânea, com suas grandes e assustadoras metrópoles, pode prescindir desses contingentes humanos.
Poesia social (simbólica/abstrata)
Vários outros poemas inscrevem-se no motivo da transição da náusea e da alienação à consciência e à esperança. Porém, diferentemente dos anteriores, tanto a concretude do cotidiano quanto das alusões históricas objetivas diluem-se em inusitadas metáforas e símbolos. Constitui-se então uma espécie de poesia social de linguagem abstrata.
Áporo*
Observemos este estranho soneto de versos curtos e regulares (cinco sílabas):
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto* se desata:
em verde, sozinha
antieuclidiana*
uma orquídea forma-se.
Áporo, muito exigido em vestibulares, apresenta em seus dois quartetos um inseto que cava inutilmente a terra em busca de uma saída. A situação asfixiante é reforçada pela metáfora que estabelece a noite, a raiz e o minério como os elementos constitutivos da realidade subterrânea, sugerindo escuridão, emaranhado, dureza e improbabilidade de escape.
Nos dois tercetos, o labirinto em que se encontra o inseto é dissolvido pelo nascimento de uma orquídea antieuclidiana*. A formação da orquídea não é apenas desconcertante: ela estabelece uma rica possibilidade de significados para um texto verbalmente tão despojado. Há pelo menos três interpretações, igualmente válidas para o mesmo:
a)Trata-se de uma metáfora da situação histórica /política dos anos 40 (Estado Novo, censura, espionagem, etc.), confirmada pelo segundo verso do segundo quarteto: “em país bloqueado”, sendo a orquídea uma imagem de esperança pelas transformações que já se anunciavam.
b)O inseto é o poeta (o eu ou o ser humano) que, sufocado – seja pela culpa, pela náusea ou pelo horror –, encontra na orquídea o novo, como aquele encontro com a rosa, em A flor e a náusea.
c)O inseto é a palavra poética, presa no subterrâneo sombrio da interioridade, e que, por fim, liberta-se, concretiza-se na página, efetivando-se como escrita.
Como diz o crítico Francisco Achcar, Áporo é um “ponto de cruzamento de três temáticas centrais de A rosa do povo: a sociedade, a existência e a própria poesia.”
* Áporo: inseto, algo sem passagem, situação sem saída, problema difícil, orquídea.
* Presto: rápido.
*Antieuclidiana: destruidora da geometria convencional, fenômeno que quebra a lógica.
Outros poemas
Três outros poemas (Passagem da noite – Uma hora e mais outra – Noite na repartição) também lidam com a idéia de passagem de um estado de infelicidade, náusea e alienação para um estado de crença em um futuro melhor. Nestes três poemas, como notou José Guilherme Merquior, há uma superação do desespero rumo ao gosto prazeroso de viver. Neles não aparecem as indicações realistas – verdadeiros instantâneos da grande metrópole – de Nosso tempo e A flor e a náusea. Tampouco chegam a ser explicitadas as circunstâncias históricas opressivas. São poemas de intenção simbólica, mas que se encaixam na categoria da poesia social por anunciarem um porvir para o ser humano e não somente para o eu-lírico.
Notícias
Uma das expressões mais acabadas das relações entre a subjetividade culpada do poeta e a realidade exterior, Notícias cristaliza-se nos telegramas que chegam, vindos de além-mar:
Entre mim e os mortos há o mar
e os telegramas.
Mais do que notícias dos eventos, estes telegramas (7) deixam entrever que, em meio ao conflito e ao sofrimento humano, uma nova cidade (civilização) emerge:
Vejo-te no escuro, cidade enigmática.
Chamas com urgência, estou paralisado.
Ainda paralisado por aquilo que nele é (ou foi) egoísmo e inconsciência, ele ouve as vozes que mandam recados e mensagens, são as vozes dos “irmãos sombrios”, são “vozes amigas” que atravessaram mares e terras para encontrá-lo e que agora o convocam para a luta. Daí os belíssimos dois últimos versos que desvelam a escolha e a intenção do poeta, embora não assegurem a sua ação efetiva:
Todo o homem sozinho devia fazer uma canoa
e remar para onde os telegramas estão chamando.
(7) Na época, todo o noticiário do exterior e especificamente, os fatos da II Guerra chegavam por boletins de algumas rádios européias e norte-americanas, mas, principalmente, por telegramas. Daí a recorrência desta palavra em vários poemas de A rosa do povo.

1. 4 A celebração da nova ordem
O despojamento do egoísmo burguês e a superação da situação de náusea induziram CDA a vários compromissos: primeiro, o moral; segundo, o humanista; terceiro, o ideológico. Imerso numa era onde a barbárie ameaçava a civilização, o poeta entende que a mera solidariedade ou apenas a argüição áspera da sociedade injusta não bastariam. Seria necessário que o indivíduo sujeitasse seu egocentrismo a um sistema de idéias em que a organização e os interesses coletivos prevalecessem.
O marxismo – na sua formulação soviética – surge, então, como a possibilidade redentora do homem. O heroísmo da URSS, na II Guerra, é o combustível desta expansão ideológica. Há, em todo o Ocidente, uma expressiva fraternidade em relação ao povo russo e ao seu regime. Como centena de intelectuais, Drummond não escapa da sedução comunista. Alguns poemas
vão traduzir esta adesão. Com raras exceções, eles constituem a parte mais perecível de A rosa do povo
Carta a Stalingrado
A resistência sobre-humana da cidade de Stalingrado às hordas nazistas é o motivo do mais denso e vibrante poema da tendência que canta o socialismo. Os versos irregulares e longos quase escorregam no prosaísmo, mas acabam mantendo, à beira do abismo, a sua condição poética. A primeira estrofe tem um uma espécie de sopro épico:
Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem
enquanto outros, vingadores, se elevam.
Depois de associar os telegramas que chegam da Rússia aos poemas homéricos, Drummond ultrapassa a exaltação dos feitos militares da cidade russa, vislumbrando na indômita resistência(8) os sinais de uma nova ordem histórica:
(...) Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Diante de tamanha grandeza, as outras cidades importantes do mundo se apequenam, tornam-se desimportantes, precisam aprender a lição épica:
Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta, (9)
aprendem contigo o gesto de fogo.
Porque agora para CDA há dois tipos de cidade: a cidade da repulsiva indiferença, da náusea, da brutalidade capitalista e do horror nazista e a outra, aquela onde os sonhos fraternos da humanidade se realizarão:
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.
(8)A resistência de Stalingrado (hoje Volgogrado) deu-se entre agosto de 1942 a janeiro de 1943. Os nazistas entraram na cidade e tiveram de lutar prédio por prédio. Mesmo assim não conseguiram conquistá-la. Em hábil manobra o exército soviético cercou-os por fora do perímetro urbano, obrigando-os à rendição. Os alemães tiveram mais de 100.000 baixas, outros 100.000 se renderam. Entre os russos, houve centenas de milhares de mortos e feridos. Começava ali a derrocada do “Reich de mil anos”.
(9)Referência a Paris que caiu nas mãos dos nazistas sem luta.
Outros poemas
A mesma dicotomia entre a cidade condenada e a cidade do futuro, entre as sombras de um mundo morto e as luzes da nova sociedade aparece em Com o russo em Berlim, Visão 1944 , Cidade prevista, Mas viveremos e Telegrama de Moscou. Todos poemas de constrangedora banalidade. Versos frouxos, idéias simplórias, revestidas de imagens aparentemente extraídas de material de propaganda do realismo socialista. Estamos longe da invenção verbal e da profundidade de pensamento que caracteriza a maior parte dos poemas de A rosa do povo.
2- POESIA DE REFLEXÃO EXISTENCIAL
Entre os múltiplos temas de CDA, o único presente em todas as suas obras, de Alguma poesia a Farewel, com maior ou menor insistência, é o do questionamento do sentido da vida. Mesmo num livro em que o engajamento social e político exerce forte hegemonia, como é o caso de A rosa do povo, sobressaem-se inúmeros poemas de interrogação existencial, alguns situados entre os momentos culminantes do lirismo de Drummond.
Principais motivos
2.1 – Solidão, angústia e incomunicabilidade
Mais centrada na esfera da subjetividade do poeta, esta tendência desvela a impotência do eu-lírico para estabelecer vias comunicantes com os demais seres humanos. Trata-se de uma solidão terrível, pois ela ocorre na grande cidade, cidade antropofágica e impassível, onde o indivíduo caminha desorientado em meio a uma multidão indiferente e sem rosto.
Anoitecer
Trata-se de um dos poemas-chave para a compreensão da intrincada visão drummondiana da existência. Na hora do crepúsculo (o entardecer em CDA muitas vezes é metáfora do fim da vida), o poeta experimenta um medo que parece se aproximar do pânico. Em quatro estrofes de sete versos irregulares estabelece-se um fascinante jogo de antíteses. Observe que o primeiro verso das três primeiras estrofes e mais o primeiro e segundo verso da última estrofe afirmam um mundo de códigos reconhecidos, permanentes e confiáveis:
Estrofe I – “É a hora em que o sino toca...”
Estrofe II – “É a hora em que o pássaro volta...”
Estrofe III – “É a hora do descanso...”
Estrofe IV – “Hora de delicadeza / gasalho,* sombra, silêncio.”
Provavelmente estes versos indiquem o pequeno mundo provinciano – senão o próprio interior rural – de onde o poeta procede e onde a ampla maioria do povo brasileiro ainda vivia nos idos de 1940. É um mundo suspenso no tempo, patriarcal, letárgico, atrasado, mas que oferece segurança e tranqüilidade aos sujeitos que o habitam.
Esta realidade feita de certezas desintegra-se, no entanto, a partir do segundo verso das estrofes I, II e III e do terceiro verso da estrofe IV, formando as antíteses que estruturam o poema:
É a hora em que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.
Ao sino dolente e místico, o poeta opõe os ruídos exasperantes da metrópole. Ao sons melodiosos, ele contrapõe as “sirenes roucas, apitos aflitos, pungentes, trágicos”, isto é, ruídos que sugerem angústia, sofrimento, dramas desmedidos, mas que talvez permaneçam indecifráveis, “uivando escuro segredo”.
A mesma estrutura ressurge na segunda estrofe, na qual a imagem do pássaro que volta a seu ninho reforça a possibilidade destas referências – contidas no primeiro verso de cada estrofe – serem as de um mundo rural/provinciano. Ao vôo solitário da ave (com sua sugestão de beleza e bucolismo) opõe-se a multidão compacta e cansada nas ruas:
É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.
Na terceira estrofe, o próprio ciclo biológico do corpo, com seu natural tempo para o descanso, é quebrado porque, ao invés do sono reparador, o que este corpo exausto busca – atormentado pelo pânico e pela indiferença desta cidade ameaçadora – é um mergulho no poço, no abismo, no fim de todas as atribulações:
É a hora do descanso,
mas o descanso vem tarde,
o corpo não pede sono,
depois de tanto rodar;
pede paz – morte – mergulho
no poço mais ermo e quedo;*
desta hora tenho medo.
A última estrofe condensa a antítese entre a ordem harmoniosa do passado, o tormento do presente e a assustadora indefinição do futuro:
Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.
A poderosa metáfora do corvo que bica (a auto-escavação, a auto-análise), induzindo o poeta a comparar a serenidade provinciana com a desordem interior e as incertezas de sua existência na metrópole, desvela uma situação de desamparo e solidão que se repetirá em vários outros poemas.
2.2 – O fluir do tempo
Um dos temas nucleares da obra drummondiana, a percepção da passagem do tempo se estabelece através de interrogações diretas sobre o sentido deste fluxo que degrada os corpos, a beleza, as coisas e também as ilusões, os amores e as crenças dos indivíduos. Affonso Romano de Sant’Anna, em ótima análise estilística, mostra a predominância em A rosa do povo de vocábulos que indicam mudança e viagem. A vida “flui e reflui, corre, passa, escorre, espalha-se, desliza, dissipa-se”, num desfile ininterrupto e cujo destino final é a morte.
Desfile
O tempo, ele próprio como motivo, aparece neste soberbo texto (redondilha maior), iniciado com um aparente paradoxo, pois o poeta escuta algo que flui silenciosamente:
O rosto no travesseiro,
escuto o tempo fluindo
no mais completo silêncio.
A seguir a dinâmica temporal (que, na verdade, flui pela memória) é expressa através de três comparações de grande poder sugestivo por identificarem esta passagem do tempo ao inesperado, ao toque sutil e ao contato quase evanescente do vento:
Como remédio entornado
em camisa de doente;
como dedo na penugem
de braço de namorada;
como vento no cabelo,
fluindo...
Neste desfile, primeiro aparecem as lembranças do frenesi da juventude (“E tento fazer poesia /, queimar casas, me esbaldar...”). Depois, em um admirável recurso associativo, o poeta justapõe a imagem objetiva da cerração que envolve o colégio e é expelida pela boca dos estudantes à imagem subjetiva do estar perdido na névoa da existência: (“A montanha do colégio. / Colunas de ar fugiam / das bocas, na cerração. / Estou perdido na névoa / na ausência, no ardor contido.”)
Após outras tantas lembranças, o poeta dá-se conta que está de novo no presente: (“E tenho mãos experientes. / Tenho calças experientes. / Tenho sinais combinados.”) Sabe que o tempo prosseguirá em sua marcha corrosiva, não aos solavancos, mas quase imperceptivelmente (“Como planta que se alonga / enquanto estamos dormindo.”) Sabe também que este fluxo o arrastará para o fim. Por isso quer dormir, o sono como ensaio para a morte: (“O rosto no travesseiro, / fecho os olhos, para ensaio.”)
2.3 – Balanços da existência
Também como resultado da percepção da passagem do tempo, CDA submete a existência do eu e dos demais seres a um balanço permanente. Perdas e ganhos alternam-se nesta investigação que poderia ser resumida numa pergunta essencial: Há algum tipo de lógica na vida humana ou ela é gratuita e vazia?
Como já frisamos, não existe na obra drummondiana conclusões definitivas. Todas elas são movediças e inconstantes. O único procedimento uniforme do poeta é a interrogação. Nesta vertente da poesia sobre a existência, há três poemas em que se processa a aceitação do primado da vida, mas de uma vida fria e indiferente ao drama subjetivo, obrigando o poeta a assumi-la estoicamente.* (Passagem do ano e Versos à boca da noite), ou quase vegetativamente (Vida menor). Já em Resíduo, aspectos positivos e absurdos da existência mantêm um confronto de resultado ambíguo. Porém, no magnífico Consolo na praia o princípio da corrosão impõe-se sobre os valores que resistem à morte e ao nada.
Passagem do ano
Outro texto clássico da poesia drummondiana e que assinala a adesão (circunstancial) do poeta a uma postura mais resignada face às correntes disparatadas da existência:
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Os quatro versos iniciais registram o fluxo temporal, sendo que no verso 2 tempo significa não o de todos os homens, mas aquele que contém a vida do poeta. No verso 4 aparece uma das mais criativas imagens de toda obra: só o sexo oferta o calor vital, só ele transmite ao ser a sensação concreta da existência.
Em seguida, o poeta enumera todas as ocupações com que o homem tenta apagar a consciência de seu destino, nivelando o irrisório e o importante, dupla face do mesmo e inútil enfrentamento do indivíduo contra a sua irremediável solidão:
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo na solidão.
O poeta sabe que o fim de seu tempo individual não é o da humanidade, por isso “Fica sempre uma franja de vida / onde se sentam dois homens”. A aceitação do destino parece ser o único ato lúcido e possível, a única resposta ao desespero:
:Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu e teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
Todas as consolações e hipóteses restam inúteis. Afogar a cons-ciência, expressar o corpo, protestar através do grito, apelar para o lúdico, para a filosofia, para a poesia, nada disso adianta:
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
E com a manhã vem a vida. Vida que se espalha por tudo, maior do que tudo, ultrapassando os dramas pessoais e o próprio tempo. Vida: essência indiferente, realidade fria, “oleosa”, com a qual o poeta deve se resignar:
2.4 – A morte
A consciência da progressiva destruição operada pelo tempo – núcleo principal de todo o amplo espectro temático de CDA – condensa-se na convicção de que o ser é sempre o ser-para-a-morte.
A “viagem mortal” do indivíduo percorre não apenas toda a poesia de indagação filosófica, mas igualmente a lírica que expressa o passado, o cotidiano, o compromisso ético e político e até a que fala do amor. A tragédia da condição humana é a da certeza da finitude. Desta expectativa da própria destruição, Drummond elabora poemas de desconcertante lucidez.

fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/carlos-drumond/a-rosa-do-povo-1.php

Nenhum comentário:

Postar um comentário